'Milei desconhecia a força da cultura', diz diretor da Feira do Livro de Buenos Aires
Ezequiel Martínez comenta a relação entre público, mercado editorial e governo
Por João Varella
A 49ª edição da Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, encerrada há algumas semanas, começou sob forte tensão política e terminou, como manda a tradição, muitos dias depois.
Pela primeira vez, a Lote 42 participou do programa NuevoBarrio, dividindo espaço com outras 11 editoras independentes. O editor João Varella aproveitou para entrevistar Ezequiel Martínez, diretor da Fundación El Libro, para discutir a dinâmica do mercado editorial argentino e as articulações políticas que moldam o futuro do setor.
Boletim Tatuí - Qual o significado da Feira Internacional do Livro de Buenos Aires para a cultura literária e para o mercado editorial? Cada feira tem sua particularidade. Por exemplo, a de Frankfurt é voltada à indústria, aos grandes negócios de direitos; a de Guadalajara é um mix, mais curta. Aqui, o foco é a presença do público, mas há três dias de jornadas profissionais antes da abertura, focadas no mercado editorial. Convidamos editores, tradutores, livreiros, bibliotecários, oferecemos capacitações. A feira já funciona o ano todo para o setor editorial. Estamos fortalecendo isso a cada edição e tentando envolver o governo nacional, provincial [estadual] e da cidade. É uma feira privada, organizada pelas câmaras setoriais, mas buscamos apoio governamental para ir também à Bienal do Rio, por exemplo. O mercado brasileiro é vizinho e importante, e apesar de por vezes parecer distante, queremos impulsionar esse intercâmbio.
Fora o espaço da Lote 42 e o estande do Brasil, não há outras editoras brasileiras. Por quê? Queremos ampliar isso. Mantemos bom diálogo com a Embaixada do Brasil, todo ano tentamos trazer autores e distribuímos convites nos nossos programas de poesia, diálogo latino-americano, entre outros. No ano passado trouxemos seis autores, ilustradores de várias áreas. Em 2024, Lisboa foi a convidada de honra e trouxe muitos títulos em português, que se esgotaram. O stand de Brasil, no pavilhão amarelo, está sempre presente e bem sinalizado. Queremos que editoras brasileiras venham e que editoras argentinas visitem o Brasil.
A Feira Internacional do Livro de Buenos Aires vai se voltar mais aos negócios? Não. A identidade sempre será a mesma: 19 dias para o público, 21 ao todo com os três dias profissionais. Esse é o nosso diferencial, a “mais longa do mundo”. A feira “explodiu” em público heterogêneo: famílias de todo o país, muitos visitantes internacionais. A diferença para Guadalajara é que aqui as pessoas vêm para encontrar autores, há mais de 1.500 atividades culturais. O foco no mercado editorial existe, mas nunca vai sobrepor a interação com o público.
Mudando de assunto, quem trabalha aqui reclama que é muito longa. Há 50 anos essa reclamação se repete. Mas os expositores confirmam: é muito trabalho montar os estandes, mas é a época do ano em que mais vende. Além disso, criam estandes com design único, chamam designers exclusivos — é um investimento. Também é desafiador manter convidados internacionais por quase um mês, mas faz parte da identidade.
O frete gratuito para livrarias e bibliotecas é único no mundo? Sim. A Conabip (Comissão Nacional de Bibliotecas Populares) convida 1.200 bibliotecários, paga viagem e hospedagem, dá subsídio para compra com 50% de desconto (editoras bancam o restante) e frete grátis até suas bibliotecas. Não conheço outra feira com modelo semelhante.
A simultaneidade com a FILBo, a feira de Bogotá, foi planejada? Não. La Rural [o espaço onde acontece a feira de Buenos Aires] tem datas fixas no calendário de eventos, assim como a Corferias em Bogotá. O que combinamos é de fazer as jornadas profissionais em datas ligeiramente distintas, para que os participantes possam ir a ambos eventos.
No ano passado houve boicote do governo federal à feira. Neste ano houve uma reaproximação? O governo desconhecia a força da cultura. Ano passado, o governo de Milei anunciou cortes drásticos na cultura e não enviou representantes à Feira do Livro. As ameaças motivaram protestos e boicotes simbólicos. Neste ano, algumas medidas foram revertidas, mas o orçamento ainda foi muito reduzido. A presidência da Fundación El Libro mudou, com Christian Rainone adotando mais diálogo e consenso. O secretário de Cultura participou da abertura, diferente do ano passado. Nossa única restrição no regulamento é a negação de fatos históricos e apologia à ditadura, portanto não há restrições a manifestações contrárias e vaias.
A Argentina conta com uma lei de proteção ao livro. O que aconteceria se essa lei fosse derrubada, como Milei tentou fazer? Sem lei, grandes redes e supermercados compram em volume e vendem a preço baixo, inviabilizando livrarias pequenas e editoras independentes. Cairiam todas num ciclo vicioso de fechamentos. Alguns acreditam que o “fair play” corrige isso, mas não conheço exemplo concreto.
Como construir uma cultura literária forte em um país como o Brasil, sem lei de preço fixo e com poucas livrarias? Por onde começar? Pela base, pelo leitor. Sem leitor, não há livro; sem leitor, não há autor.
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Parte desta entrevista serviu de base para o texto Maratona literária, para a revista Quatro cinco um.
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Este texto amplia o Boletim Tatuí nº 126. Inscreva-se para receber o conteúdo semanalmente em sua caixa de e-mails.