Tumulto
Neste conto de Leandro Marçal, as memórias da juventude e a consciência da própria hipocrisia se mesclam diante de uma cena de violência causada por fraturas sociais e políticas à luz do sol de Santos
Este conto foi publicado em maio de 2025 no livro Me vê dez médias, disponibilizado no site do autor. Ele foi escolhido para o encontro do Terapia Literária da Sala Tatuí do dia 20 de maio de 2025. Inscreva-se em www.salatatui.com.br para receber o link do Zoom.
Diminuí o passo depois de passar pela porta do shopping Miramar, saindo pela Floriano Peixoto. Desci as escadas bem devagar, tentando entender o que acontecia. Barulheira, gritaria, corre-corre pros lados da Ana Costa. Podia ser um arrastão, um tiroteio, ou só um tumulto por nada. Vai saber. Costumo caminhar rápido em lugares movimentados como o Gonzaga. Só que fiquei desconfiado e precisava ir até o ponto de ônibus mais perto, justamente na Ana Costa. Me arrependi de não ter saído do shopping pela Euclides da Cunha. Paciência. Piso na calçada olhando de um lado pro outro, com vergonha de perguntar àquela gente desocupada o que acontecia.
Mais gritos. Pegaram, pegamos, tá aqui, segura. Pegaram quem? O que tá aqui? Aqui onde? Segura o quê? Preciso sair um pouco da calçada, não dá pra passar. Mais gente, mais tumulto. Uns caras estranhos de pé. Um cara de cabeça baixa, sentado, amarrado no poste. Uma velha com cara de rica, parada, do lado, tremendo e respondendo às perguntas gritadas. Um chute aqui, um soco ali, um tapa sobrando. O cara deve ter roubado a bolsa ou o celular da velha com cara de rica em pleno Gonzaga, a velha com cara de rica gritou, os caras estranhos correram atrás do ladrão, o ladrão se fodeu.
Quero me juntar aos caras estranhos e também dar um chute no ladrão. Fazer a minha parte, não me omitir. Filho da puta, roubando uma senhora em pleno Gonzaga, em plena luz do dia. Tem que se foder, tem que tomar um pau pra ver se aprende. Mas tô com pressa. Como quem não quer nada, olho pro cara amarrado no poste. Ele olha pra mim. Eu conheço esse rosto. É o Serginho. Caralho, é o Serginho! Ele continua me olhando, eu viro o rosto pra frente, acelero o passo.
Minhas pernas tremem, sinto os batimentos cardíacos acelerando. Chego no ponto de ônibus e dou sorte, tem lugar pra sentar. Abaixo a cabeça, agora quero voltar lá e socorrer o meu colega de escola. Sem chance. Me falta coragem. Se eu volto, capaz de me amarrarem também, de eu ser espancado também, de eu pagar pelo que nem fiz. Caralho, o Serginho!
***
Na escola, o Serginho era um moleque folgado. Popular, é verdade. Popular e folgado. Brincava, zoava, tirava sarro de todo mundo. Inventava apelidos, respondia às professoras, volta e meia chamavam o pai e a mãe dele pra trocar uma ideia com a diretora.
Porque tava fumando maconha, porque dividiu um maço de cigarro no intervalo, porque pulava o muro na hora da aula. Coisas de moleque. Apesar de má influência, todo mundo gostava do Serginho. Todo mundo parava pra ver o Serginho jogando bola na quadra. O moleque era bom.
O Serginho dava trabalho, mas ninguém desistia do Serginho. O Serginho colava nos nerds pras provas, mas reprovou duas vezes. Acho que por faltas. Burro, o Serginho nunca foi. Pegava geral, passava o rodo. Quando mexiam com alguém, era o Serginho que chamavam pra apaziguar. Quase sempre dava certo. Os valentões tinham medo do Serginho. Medo ou respeito, não sei. Eu tinha uma admiração genuína, uma admiração a distância, quase como um fã.
Uma vez, ele me deu uma bronca.
— Não mosca, boy. Presta atenção, aqui tá embaçado.
De férias da faculdade, saí do trabalho direto pra casa de uma namorada. Tinha uns dois anos que nem ouvia falar do Serginho. Diziam que ele terminou o Ensino Médio, mas não era chegado em trabalho. Mexeu com a minha vaidade saber que o Serginho lembrava de mim. Quando o moleque me enquadrou pedindo o celular e a mochila, no meião da Vila Valença, o Serginho apareceu de bicicleta. Do nada. Como um salvador. Mandou o ladrão vazar. Me deu um conselho. Como se eu tivesse mais possibilidades de futuro que ele. Como se eu tivesse muito mais a perder que ele. E foi embora, do nada.
Nas duas últimas vezes que vi o Serginho, tinha um roubo no meio do caminho. Sei lá porque ele saiu de São Vicente pra roubar aquela maldita velha no Gonzaga. Sei lá se ele ainda morava em São Vicente. Sei lá se ele tinha casa pra morar. Sei lá se o Serginho vai ser preso. Tento olhar da janela do ônibus, no cruzamento da Ana Costa com a Floriano Peixoto. Vejo uma viatura, um monte de gente, o trânsito. Não vejo o Serginho.
***
Hoje, resolvi almoçar no escritório. Fui pro cantinho da marmita com a galera gente boa. Deu pra economizar. Fim do mês é foda, o VR foi embora já tem quase uma semana. Ligaram a televisão. Nem reclamei. Prefiro comer sem barulho, mas já tô quase no fim. Deram um jeito de colocar esse aparelho na salinha, pra distrair o pessoal antes de voltar pro segundo tempo de trampo com planilhas.
Deixaram no jornal do almoço. Aumentaram o volume. Quando ouço o nome Sérgio, olho pra tela. O apresentador lê um texto indignado com a violência em plena luz do dia, num dos bairros mais movimentados e bem frequentados de Santos. Nas palavras do homem engravatado, tão branco e tão magro e tão bem formado como eu, dá pra entender a indignação dos populares com a violência da cidade. Claro que a justiça com as próprias mãos não pode ser incentivada, o apresentador continua, mas o que fazer quando as autoridades largam a população e a justiça solta bandidos em tão pouco tempo? Uns colegas balançam a cabeça, eu não desgrudo os olhos da tela.
As palavras “país da impunidade” me arrepiam. A palavra “linchamento” me dá tontura. Chutes, socos, tapas. Pauladas, muitas pauladas. O Serginho ali, amarrado ao poste, sem ter como se defender. E eu indo embora como se não o conhecesse há anos, e eu indo pra casa pra me livrar do desconforto.
Sinto o estômago revirado com os comentários comemorando a morte do Serginho. Peço licença e saio andando rápido. Entro no banheiro, me isolo numa cabine recém-higienizada. Abro a tampa da privada. Fico de joelhos. Vomito o almoço e o café da manhã de hoje. Respiro e volto a vomitar. Foi-se embora a janta de ontem. Ouço uma batida na porta, perguntam se tá tudo bem comigo. Respondo que sim, foi só um mal-estar. Digo pra ninguém se preocupar, é só um estômago revirado. Acontece. E esse enjoo vai passar, sempre passa.
Leandro Marçal é escritor. Publicou três livros: Notas de um restaurante, No caminho do nada e De Letra: o futebol é só um detalhe. Em 2019, ficou em terceiro lugar na categoria conto com “O cão” no X Prêmio Pérolas da Literatura.
Que honra essa escolha, muito obrigado!