Priscila
Entre uma mulher atrasada para o trabalho, uma manifestação que fecha a rua e o futuro vislumbrado desde uma taça de champanhe, Yuri Al'Hanati cruza histórias para construir um mosaico terno e caótico
Este conto foi publicado em julho de 2024 na Julia Revista de Literatura, da editora Arte & Letra. Ele foi escolhido para o encontro do Terapia Literária da Sala Tatuí do dia 11 de março de 2025. Inscreva-se em www.salatatui.com.br para receber o link do Zoom.
O cenário é um quarto de hotel barato, com cortinas finas que deixam um tom róseo nas paredes. Otávio está de pé, a um metro de Priscila. O plano escolhido foi o americano. Eles trocam palavras, elevam e abaixam a voz, mas o tom não é outro senão o de cuidado. Priscila vira as costas em uma reação instintiva a seu próprio medo. É Otávio quem se aproxima lentamente, e a vira, para si, em plano fechado. A música dá um tratamento reconciliatório, e sugere um desenlace. Olham um no olho do outro. Os narizes se aproximam e as bocas, hesitantes, por fim, se tocam, em close. A música sobe.
A cena ganha rápidos contornos eróticos conforme a movimentação dos corpos e bocas se torna mais acelerada. Dura apenas o tempo da sugestão. A cena se interrompe e a próxima tomada mostra a praia de Ipanema.
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O cão está enrodilhado debaixo da toalha rosa que lhe faz as vezes de coberta enquanto as primeiras luzes azuladas da manhã iluminam o outro canto da área que funciona como cozinha e lavanderia na pequena casa. Não se mexe. Não respira. Deixou este mundo dormindo, e enquanto o corpinho esfria sobre a cama puída de tecido azul mastigado pelos dentes que um dia foram ávidos por brincadeiras de morder, Priscila toma banho. Já estranhou a ausência de efusividade com que é recebida toda vez que acorda, mas só desconfia do frio da madrugada. Depois do banho, que é quando o dia realmente começa, irá descobrir o corpo imóvel quando perceber que o barulho de sua rotina matinal é mais do que o suficiente para acordar qualquer um que divida o pequeno apartamento adaptado a partir do que foi um dia uma casa imponente. O ar lhe faltará, e o choro de desespero vai precisar ser parido a fórceps por entre o choque imobilizante. Precisará dele. Sem o choro, não será capaz sequer de ligar para o supervisor para que este lhe negue o luto do dia. Na negociação com o patrão, poderá chorar seus mortos não-humanos se aceitar o desconto pelo dia, e mesmo isso não será uma escolha bem vista, levando em consideração que obrigará o supervisor de salão a achar uma taxa para a hora do almoço. Nem se não fosse domingo, dia em que ganha a mais pelo adicional de fim de semana, poderia se conceder tal luxo. Se faltar hoje, perderá o dinheiro para amortizar a renegociação com o banco e o cheque especial. O supervisor, um polaco gordo e forte de barba rala, adotará um tom paternalista e paciente quando descobre que Alice não é o nome de um ser humano, mas essa condescendência durará apenas o tempo de uma segunda contra argumentação. Não quererá saber que Alice é a única companhia que Priscila tem na vida, e não será sem certa irritação que argumentará, de forma peremptória, a fim de encerrar a conversa, quando ouvir há quantos anos Alice está na vida de Priscila, que cachorro é assim mesmo, dura pouco e a vida continua, mas que Priscila sempre será livre para fazer o que quiser da vida. Quando desligar o telefone, Priscila pensará que não se sente livre e, enxugando as lágrimas, decidirá deixar tudo do jeito que está e, pegando sua bolsa, fechará a casa sem o habitual estardalhaço desesperado da companheira.
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O microfone é um Shure SM-58, e está ligado à mesa de som do carro grande, de dois andares, trio elétrico ou palanque político a depender da ocasião. O peito, habituado a ser visto em camisas sociais branquíssimas, é coberto hoje por uma camiseta cinza com uma frase, em fontes diversas de cores diversas, entre preto, dourado e vermelho: “sou salvo pela graça, mas não foi de graça”. E estufa, para que o ar saia como se o microfone fosse meramente acessório. O cabelo, tingido secretamente de um negro profundo, está engomado em um penteado que valoriza o volume do topete. As sobrancelhas foram delineadas com uma minúcia tamanha que confere uma artificialidade à fisionomia, e o rosto, que seria coberto por uma base em domingos normais, hoje mostra suas verdadeiras cores. Precisa ser visto suando debaixo do sol, precisa deixar que a raiva lhe transfigure. Parecer mais humano e menos divino. Fazer a urgência do assunto lhe roubar momentaneamente a opulência, como se o mundano estivesse subtraindo o encantamento da graça da vida de todos, até da dele. Junto de si, no deque móvel, algumas outras figuras levemente conhecidas. Muitos deles sim, estão de camisa social branca sem gravata com calças jeans ou pretas, talvez para conferir certa autoridade em um cenário informal. Lá embaixo, uma profusão de pessoas de todas as idades, raças e classes sociais começa a se adensar com cartazes, faixas estendidas na altura do peito por várias mãos e balões rosas e azuis. A quantidade de crianças pequenas em ombros, colos, carrinhos ou mãos dadas daria a um desavisado a impressão de se tratar de um programa infantil, para o qual a presença dos adultos não passa de exigência legal. Na realidade, é o completo oposto. O domingo é dos adultos, e as crianças ali é que servem a eles. Na visão dos organizadores, elas galvanizam a narrativa, amalgamam as forças e salvaguardam a integridade física do grupo. Absolutamente ninguém ganharia apoiadores ao investir com violência sobre um grupo de adultos que carregam crianças consigo. As crianças são o futuro, gritam as vozes em uníssono improvisado em tão pouco tempo. As crianças são o futuro, mas também são o combustível, o escudo e o toque do xofar.
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Fabiano Cecchi recebe a equipe de reportagem em casa. Está de calça de pijama listrada, uma camiseta branca com gola V sem estampa e chinelos de dedo. Os longos cabelos artificialmente acobreados, que deixou crescer para o papel, estão amarrados em um coque samurai. Elisa Beukelaer, sua mulher, o acompanha, vestindo uma bata leve que não aperta a barriga já crescida. Elisa foi par de Fabiano em Estrela da Manhã, e engrenaram um romance real. Agora, casada, ela apoia o marido na controvérsia. Fabiano, considerado símbolo sexual, receberá, dali a uns meses, a homenagem máxima da revista GQ: o título de homem do ano – em grande parte, por seu papel recente. A filmagem desta entrevista será apenas uma entre várias outras que o programa de entretenimento jornalístico de domingo à noite irá fazer. Integrará a matéria uma fala do autor, de algumas pessoas escolhidas na rua e de Kwara Oyó Villalba, representante da ONG Luz dos Invisíveis. Para esta parte da matéria, a produção do programa tem maior controle sobre o resultado final. Cecchi é da mesma emissora e está sendo assessorado na entrevista. A ideia é mostrá-lo como um pai de família, estruturado, bonito, bem sucedido, despreocupado em seus pijamas, confortável com a própria sexualidade, reescrevendo novas entradas sobre o masculino e o feminino enquanto faz história na televisão aberta. Fala sorrindo de si e sério da personagem. A mulher acompanha o marido no tratamento. A reportagem antecipa a polêmica do sábado e já grava, em plena terça-feira, o que dá pra ser adiantado, como esta entrevista. A experiência no ramo concede o faro para a audiência. Em dado momento, Bombom, o border collie marrom do casal, invade o espaço da filmagem e o diretor resolve deixar o cão ali, acha que dá uma boa composição. Estão em quadro: Fabiano e Elisa, sentados no sofá de couro, gravidíssimos, e bombom, aos pés do casal. Mais adequado, impossível, pensa o diretor. A reportagem consegue até ser incisiva ao confrontar o ator com as críticas que recebeu por ser ele — um homem — no papel. Fabiano não tropeça nas próprias palavras para falar de privilégios, de projeção, do apagamento sistemático de minorias, de degraus, de luta, do fardo da pessoa pública que aguenta carregar, da esperança de que a novela traga mais visibilidade às pessoas que sofrem diariamente com o preconceito, da possibilidade de fazer brotar o amor no coração dos brasileiros, que é a grande carência do país no momento, em sua avaliação. Espera mudar muitas coisas.
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O homem ao volante tem cabelo crespo grisalho e uma barbicha igualmente crespa e grisalha. Opera aquela linha há anos, conhece os passageiros frequentes e até alguns esporádicos. Descobriu um pouco tarde demais que parte da rota precisaria ser desviada por causa do protesto. Não foi informado sobre um protesto. Apesar de ter sido organizado com uma semana de antecedência, aqueles de cima do carro de som não pediram autorização para a prefeitura para simular um poder de mobilização maior do que o real. O prefeito aparecerá mais tarde no ato, antes do meio-dia, para falar do compromisso do município com a cidadania e com os valores que seus eleitores esperam que ele proteja. Dirá que não se importa com os xingamentos que recebe por parte do outro lado, e dirá “do outro lado” com um ar de deboche contido que, entretanto, será capturado por todos que o ouvirem. Aceitará todas as pechas contanto que possa fazer o trabalho para o qual foi eleito, o microfone em sua mão tremendo pela efusividade das palavras. Em coletivas sobre a manifestação mais tarde naquele mesmo dia, explicará que foi comunicado por sua equipe ainda naquela manhã e que resolveu verificar in loco o destacamento de urgência da guarda municipal e da polícia militar. Demonstrará preocupação extrema com a segurança dos manifestantes, dado o número expressivo de crianças presentes, e diz que cobrará da autoridade organizadora — que, aliás, estará a seu lado no momento em que disser isso — uma resposta sobre a ausência de pedido de permissão para o ato. Mas nada disso sabe ainda o motorista do ônibus, que buzina um tanto irritado antes de se resignar e buscar uma rota para desviar o percurso. Chega até seu ouvido que é um ato contra o capítulo de ontem, e se inflama. Não com o protesto, mas com o beijo, especulado em revistas de fofoca há algum tempo. É ele a razão de precisar entrar por ruas secundárias mais difíceis de manobrar o veículo comprido. Grita, entre indignado e divertido, brandindo o punho de forma caricatural, o nome de Priscila, que desperta assustada de seu transe melancólico em um assento próximo ao do cobrador. Pergunta a ele se o motorista lhe chamou, mas ele responde sorrindo que não. Ah, a novela. Priscila sabia que seu nome estava na boca do povo, e solta um muxoxo. O cobrador começa a discorrer sobre o assunto, pra puxar conversa, e pergunta o que ela acha de ter um nome polêmico, e o que acha da cena, da novela, do autor, das pautas da emissora, algo assim, mas ela mal consegue acompanhar o que é dito. Todas as suas forças se voltam para eternizar os momentos com Alice na memória e para barrar as lágrimas. O cobrador insiste, e ela diz que não sabe. O motorista entreouve a conversa e diz que ela tem que saber. Precisa se posicionar, ainda mais sendo ela parte interessada, por ter agora seu nome associado a uma imundície daquelas, alerta ele. Se não fizermos nada, daqui a pouco vai ser só isso em todas as novelas, alerta ele. Tem que ficar atento às crianças, alerta ele. Alice ouve todos os alertas com atenção, em parte para tentar esquecer momentaneamente de sua tristeza, em parte porque alguém teve a bondade de lhe dirigir a palavra naquela manhã. Mas logo pensa na discussão com o supervisor e segurar o choro volta a ser necessário. Se pergunta se há mais alguém naquele ônibus nesse exato momento que também está segurando o choro e esse pensamento a conforta. Sente-se destituída de sua personalidade. Não sente vontade de exercitar seu humor ácido, as respostas rápidas e sagazes que tanto divertem os colegas de trabalho. Não tem vontade de ser mais ninguém além de ser alguém que chora por Alice. Mas enrijece o semblante e olha o relógio. O desvio vai lhe atrasar. Já está perto de seu destino, trabalha perto de onde a manifestação ocorre, e calcula que se descer aqui, conseguirá andar mais rápido do que o ônibus. Aperta o botão, põe os óculos escuros e desce.
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As botas tem saltos altíssimos, os tênis estão todos limpos, e as vinte e quatro pernas são todas finas e estão à mostra. Usam preto e não caminham. Fazem algo entre uma marcha e uma passada de desfile em direção ao grupo de pessoas reunidas em torno do carro de som. Recebem vaias assim que se aproximam. Encaram os manifestantes nos olhos com altivez, raiva e deboche. Formam pares rapidamente e começam a se beijar, sob gritos furiosos que demandam a expulsão e lembram da presença de crianças. Segurando crianças pelas mãos e no colo, se dirigem aos policiais e pedem que detenham os invasores. Com cassetetes, escudos e outras armas não letais, os agentes do Estado estão tranquilos. Dizem que não podem fazer nada contra um grupo de pessoas se beijando em um local público. Ainda se estivessem cometendo atos libidinosos ou afrontando alguém fisicamente, poderiam intervir, mas é apenas a mera presença que afronta a todos. Alguém tenta argumentar sobre o grau de lascívia do ato, sobre as crianças. Insistem nas crianças, mas elas também estão sujeitas ao ambiente público, e não há nada a ser feito. Um homem grande, com músculos aparentes estufados por baixo de uma camiseta branca que diz “posso orar por você?” junta alguns outros homens e chegam ao grupo que se beija com empurrões. Gritos de protesto e ameaças por parte dos invasores são a resposta esperada. Alguma mão voa em alguma cara. Começa uma luta física injusta e generalizada, e os policiais sentem-se, finalmente, autorizados para intervir. São lembrados de que não podem usar o gás por causa das crianças, então batem os cacetetes indiscriminadamente, tanto nos manifestantes quanto nos intrusos. O confronto físico passa a envolver também policiais, sob protestos do homem de cabelo tingido segurando o microfone. Resolvem imobilizar o braço dos intrusos e os levarem para longe dali.
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Priscila passa pelo grupo exaltado que está sendo escoltado pelos policiais. Porque também está vestida de preto em meio a tantas camisas brancas, azuis e rosas, é tomada por invasora por uma das manifestantes, que a empurra já gritando. Um homem percebe a injustiça e corre em seu socorro. Diz que ela não estava no grupo, que só está passando pelo mesmo lugar. Diante do enlace do braço do homem, Priscila finalmente chora de forma desimpedida. A manifestante que gritou com ela se desespera e começa a abraça-la também, pedindo desculpas efusivas. O homem que a abraça esfrega a mão em seu ombro, e pede pra que lhe tragam um pouco de água, que oferece a Priscila. Ela toma da garrafinha entre soluços. Quando termina, perguntam seu nome. Ela diz. O desconforto dura um milésimo de segundo entre todos os presentes, mas o homem descontrai e diz que dessa Priscila eles gostam, e dão risada. Ela sorri entre lágrimas, ele pergunta por que está chorando. Priscila fala então de Alice e do trabalho. O homem ouve com atenção, e pergunta se ela gostaria de orar por Alice nesse momento. Priscila, que nunca foi religiosa, cogita a ideia por um momento, mas lembra que já está se atrasando significativamente para o trabalho, e recusa, porque precisa ir. O homem lhe estende um cartão, diz que eles se encontram todo domingo às dezenove horas nesse endereço. Passe lá, você vai se sentir bem melhor.
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A taça com champagne toca de leve na taça com água com gás, e o cristal ressoa por alguns segundos. Os olhares se penetram profundamente, há uma carga sexual incontornável, típica da felicidade de qualquer casal jovem. O sommelier deixou a garrafa de Taittinger mergulhada em um balde transparente com gelo ao lado da mesa, com um guardanapo vermelho apoiado nas beiradas do acrílico. Decidiram pedir o menu sazonal, aquele com várias porções minúsculas e elaboradas com ingredientes ora exóticos, ora desconcertantemente locais. Waygu. Pimenta murupi. Hamachi. Camarão carabineiro. Anchovas do cantábrico. Culatello da Bocaína. Sem a harmonização, porque apenas um deles pode beber. Estão radiantes e confiantes nos novos caminhos que se abrem para ambos a partir de hoje. Ele ganhará projeção internacional com a ousadia de seu papel. Ela vai integrar a coluna de mães esbeltas com filhos perfeitos que será convidada para programas matinais e contratada por uma infinidade de marcas pelos próximos treze anos pelo menos — sem contar todas as fotos. Veem um no outro a extensão do próprio sucesso, e a pulsão sexual que sentem é, em partes, voltada para si. A garçonete chega para anotar os pedidos. Enquanto ele fala, ela repara na mulher que está de pé, e lê o nome na plaqueta dourada que carrega espetada no colete preto. Amor, olha o nome dela, exclama a mulher grávida. Ele sorri e a cumprimenta. Esse nome está na boca de todo mundo hoje, e me deu muita felicidade, diz o homem, e completa, com ar professoral: espero que você seja feliz também. Ela dá um meio sorriso e agradece sem muita efusividade. A mulher repara, por trás da hospitalidade profissionalíssima, uma tristeza profunda no rosto da garçonete, mas não comenta nada. Com a informação do menu sazonal para ambos inscrita no tablet, ela se afasta. Irá voltar àquela mesa ainda muitas vezes, a cada hora com um pratinho diferente do menu, e terá que explicar cada um deles com uma firmeza na voz que não lhe virá hoje. O casal esquece dela no momento em que se retira do campo de visão, mas volta a lembrar da mulher e do nome quando reaparece. Entre mesas, pedidos e pratos nas mãos, ela mesma, também, já começa a esquecer de si.
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Uma mosca varejeira zumbe pela cozinha e pousa na orelha do cachorro. Deposita ali, sem resistência, alguns ovos brancos minúsculos que se parecem com grãos de arroz. Logo em seguida voa, bate no vidro da janela basculante um par de vezes e escapa pela fresta aberta. Não se ouve barulho dentro do apartamento.
Yuri Al’Hanati nasceu no litoral do Rio de Janeiro e reside em Curitiba desde 2004. É autor dos livros de crônicas Bula para uma vida inadequada (2019, finalista do prêmio Minuano) e A volta ao quarto em 180 dias (2020, finalista do prêmio Jabuti), ambos pela editora Dublinense. Como contista, colaborou para revistas e antologias.