Os olhos mais verdes
Neste conto da escritora boliviana Liliana Colanzi, acompanhamos até onde uma garota de dez anos pode ir para negar suas origens e realizar seus desejos mais profundos
Este conto foi publicado em 2023 no livro Vocês brilham no escuro, na coleção Nosotros! da Editora Mundaréu. Ele foi escolhido para o encontro do Terapia Literária da Sala Tatuí do dia 1 de abril de 2025. Inscreva-se em www.salatatui.com.br para receber o link do Zoom. ATENÇÃO: o uso deste conto no Terapia Literária foi autorizado até o dia 3 de abril.
Passou o décimo aniversário no povoado de sua mãe. Todas as férias voltavam àquele povoado da selva onde não havia carros, mas motos que davam voltas ao redor da praça e insetos gigantes tostando nos postes de luz. Seu pai comprava mogno para levar à cidade e construir móveis laqueados: com o tempo, havia cada vez mais madeireiros na floresta e menos árvores de mogno, e mais móveis laqueados com cabeça de cisne nas casas elegantes. Ofelia gostava do povoado porque a deixavam brincar com as crianças do bairro até depois da meia-noite. Quase todas as crianças também andavam de moto, como uma gangue de pequenos entregadores de pizza. O único cinema exibia filmes de samurai, e na praça havia uma sorveteria na qual compravam frutas de nomes misteriosos e sonoros: físalis, cajá-manga, pitanga, ocoró, açaí…
No dia de seu aniversário, seus pais a levaram para comer no Palácio do Dragão, único restaurante chinês da região. Do teto pendia uma divisória acortinada vermelha e dourada, e a entrada era vigiada por dois dragões de estuque. Na porta, seus pais cumprimentaram com deferência um homem loiro e de semblante prejudicado pelas olheiras: era o senhor T., outrora um cantor famoso. Agora era alcoólatra e cantava em karaokês e festas de aniversário de estancieiros. O senhor T. cumprimentou sua mãe com um beijo explosivo na bochecha que a deixou aturdida e enrubescida. Depois abraçou Ofelia para cumprimentá-la pelo aniversário, envolvendo-a com seu hálito de uísque: É uma moça bonita, disse, uma pena não ter puxado os olhos do pai.
Antes que os pais de Ofelia pudessem reagir, o senhor T. já havia ido embora e um garçom de bigodes grandes e falsos usando um chapéu vermelho de papel os conduzia até uma mesa redonda ao lado de um aquário em que bagres atônitos nadavam em círculo. Mas Ofelia ficara de ânimo abalado pelo comentário. Não conseguiu se recompor nem mesmo quando lhe trouxeram a torta de pêssego. Depois de soprar as velas, o garçom deixou uma bandeja de biscoitos da sorte envolvidos em papel-alumínio com o desenho de um crisântemo. A de Mariano, seu irmão mais velho, dizia “A superstição é a poesia dos pobres”. A de sua mãe era “Quem nasce tatu morre cavando”, mensagem que azedou seu humor. O biscoito da sorte de Ofelia, por outro lado, veio cheio de promessas: “Realizam-se desejos de todos os tipos. Ligue 666-666”. Ofelia guardou o papelzinho no bolso sem mostrá-lo a ninguém.
Foi dormir com os pensamentos saltando dentro da cabeça como macacos nas copas das árvores. Pensou que gostaria de ter nascido com os olhos verdes de seu pai, filho de camponeses italianos que chegaram ao país fugindo da guerra. Mas tanto ela quanto seus cinco irmãos receberam os olhos raivosamente escuros da mãe, nona filha de um professor rural beberrão e uma mulher muito pobre. A mãe de Ofelia havia escapado da sina das pessoas do povoado ao se casar com o belo estrangeiro de olhos verdes, e se voltava ao povoado era só porque o negócio do marido a obrigava. Caso contrário, nunca teria olhado para trás. Quando as crianças dali perguntavam a Ofelia de onde vinha, ela respondia sem hesitar: da Itália. Embora jamais tivesse visitado o país, e embora tivesse herdado o nariz chato da tia Amanda e os olhos chocolate-escuros de quase todo mundo.
No dia seguinte, na sala da casa que alugavam, aproximou-se do telefone mostarda que ficava ao lado da agenda de couro preto em que seu pai guardava os cartões dos clientes e serrarias. Ofelia discou o número do papelzinho. Uma música de elevador precedeu a voz elegante de uma secretária:
— Em que posso ajudá-la?
A voz modulada e quente da secretária a convenceu de que se tratava de um lugar sério e não de um golpe.
— O anúncio diz que vocês realizam qualquer tipo de desejo — disse Ofelia e explicou qual era o seu: — Eu quero ter olhos verdes. Tem como?
— É preciso discutir isso diretamente com o Chefe — disse a secretária.
Ofelia anotou o endereço. Na segunda-feira foi até lá com o dinheiro que tinha ganhado de aniversário guardado em um porta-moedas de plástico. O lugar era um estúdio de tatuagens no segundo andar de um mercado. Na sala de espera, um jovem metaleiro fazia palavras-cruzadas. A secretária era incrivelmente bonita, pensou Ofelia, tal como a imaginara. Seu peso de papel era uma bolinha de cristal que continha uma casa minúscula sobre a qual nevava o tempo inteiro. A secretária levantou os olhos para ela e os cílios postiços se ergueram como um leque.
— O Chefe está à sua espera — disse.
Quando Ofelia entrou no escritório, o Chefe estava inclinado sobre a escrivaninha aspirando um pó de cristais sobre um espelhinho de bolso. Limpou o nariz com o dorso da mão, escondeu o espelho em uma gaveta e ajeitou o cabelo preto modelado: tinha um sorriso branquíssimo. Ofelia gostou de sua camisa de listras pretas, brancas e alaranjadas bem ajustada no torso e arregaçada na altura dos cotovelos. Era um dia quente, mas o cômodo estava frio, embora não houvesse nenhum aparelho de ar-condicionado visível. Na parede havia um quadro de paisagem tropical com um tucano pousado sobre uma palmeira, desses comprados em lojinhas de bugigangas.
O Chefe a convidou a sentar-se e a fitou de cima a baixo:
— Já estava me perguntando por que estava demorando tanto para vir — disse.
Aproximou o rosto ao de Ofelia: em seu perfume se notava uma presença forte de anis, cheiro desagradável para ela. Ele perguntou qual era o desejo em seu coração. Ela o sussurrou em seu ouvido, aliviada por tirar aquilo do peito. O Chefe assentiu, impassível.
— Já ouvi pedidos mais estranhos de outras meninas — comentou.
Ela sentiu uma imensa simpatia pelo Chefe.
— Quanto custa? — perguntou e apertou nervosa o porta-moedas em suas mãos.
— Só vou precisar de uma pequena assinatura.
Pôs diante dela um livro de capa grossa com páginas repletas de assinaturas irregulares de muitas outras garotas. Levando em conta quem era, pensou Ofelia, as mãos do Chefe tremiam demais e as unhas eram muito compridas e sujas. Ela já havia visto aquela cena muitas vezes nos livros de catecismo do colégio e se surpreendeu com quão fácil era renunciar ao Céu. Quem ligava para um coro de anjos se podia ter os olhos cor de menta com que tanto sonhava…? Pegou com firmeza a caneta prateada e estampou sua assinatura em letras grandes e redondas: no lugar correspondente ao ponto do “i” desenhou um coração. Não sentiu nada de extraordinário. Na verdade, pouca coisa: só uma memória fugaz de algo escapando, a incapacidade de evocar as texturas das frutas do mato e o rosto das crianças do bairro, o esquecimento de imagens muito queridas como o rastro das estrelas entre os galhos das árvores… Mas não podemos ter saudades do que já não lembramos, e ela tinha pressa para se transformar em outra.
— Agora olhe para mim — disse ele, segurando-a pelo queixo.
Ofelia ergueu a vista para receber o mundo com aqueles olhos novos. Queria acreditar que lá, sobre a tela barata do tucano, começaria a ver com nitidez a paisagem sonhada da terra de seu pai. Mas só viu a luz escura emanando dos olhos do Chefe como de um cântaro virado.
Deslumbrada com o próprio reflexo, aproximou-se para beijá-lo.
Liliana Colanzi (Bolívia, 1981) é mestre em estudos latino-americanos pela University of Cambridge e doutora em literatura comparada pela Cornell University, na qual atualmente é professora assistente e conduz pesquisas sobre ficção científica, terror e o fantástico na literatura latino-americana moderna e contemporânea. Idealizadora da Dum Dum Editora, na Bolívia, também é autora das coletâneas de contos Vacaciones permanentes (2010) e Nuestro mundo muerto (2016) — esta última, finalista do Prêmio Hispano-Americano de Contos Gabriel García Márquez.