O tio da America
Escrito no século 19, este conto do escritor português Fialho D'almeida retrata de que forma experiências vividas por comerciantes em terras sul-americanas eram compreendidas pela sociedade europeia
Este conto foi publicado no livro Contos, de 1881, e na edição de 1918 da Livraria Classica Editora. Ele foi escolhido para o encontro do Terapia Literária da Sala Tatuí do dia 4 de fevereiro de 2025. Inscreva-se em www.salatatui.com.br para receber o link do Zoom.
Ha tempos, escrevia Sabino de Sousa Pancada, commerciante de seccos e molhados no Pará, a seu unico sobrinho e futuro herdeiro Alfredo Carvalhosa, já n’aquelle tempo pai de dois pequenitos e esposo da boa Maria do Resgate — “ha tempos que medito uma viagem á Europa, com residencia demorada no meu paiz natal. Vai em trinta annos que aqui estou, e nem uma só vez tornei a vêr Lisboa. A velhice traz-me saudades. De fórma que por estes tres ou quatro mezes mais proximos ahi me tens, prezado sobrinho. Arranja-me quarto ao pé do dos teus pequenos, de quem me lembro tanto como se os tivesse visto alguma vez. O Arthur, principalmente, é a minha paixão. A photographia que me mandaste ultimamente, pinta-m’o como um cherubin, pobre criança!…”
— Aquillo é homem d’ouro! ponderava o Carvalhosa para a esposa, mignonne sadia e fresca, que tornava o ninho sonoro da musica dos seus risos. Honrado a mais não! E homem intelligente! Quando d’aqui sahiu não passava d’um pobre rapaz sem protecções e sem chelpa, infeliz no officio de selleiro que lhe mandaram ensinar, e devorado de febre e desgostos. Isto contava meu pai que Deus tem. D’uma vez apparece-nos em casa, de chapéo á brazileira e chale-manta, a pedir a benção aos tios e declarando que se partia para o Pará, na barca Ligeira, do Neves. Cada qual fez por tirar-lhe semelhante mania dos cascos. — É morte certa! dizia minha mãi. — É tolice de metter os tampos dentro! ponderava meu pai, que fôra da alfandega de consumo.
Apesar de tudo, o tio Sabino abalou. Quatro annos depois tinha o estabelecimento na rua de Gonçalves Dias, e hoje é rico como os primeiros negociantes do Pará, despacha gommas, ginguba e oleo de palma, negoceia em velames e cabos, tem fazendas no interior e dinheiro nos bancos, subscreve com grandes quantias para os monumentos e obras uteis do seu paiz, soccorre os parentes, estudou nas horas vagas, e sabe onde tem a cabeça, coitado!
— E homem de sessenta annos! juntou Maria do Resgate afagando os cabellos loiros do Arthur.
— Deus lhe acrescente a vida, que por me julgar habilitado á herança me não esqueço da amizade com que o bom velho me tem recebido.
— Nem eu!
— Nem eu! gritou o Arthur, que era tido em casa como um precoce extraordinario, e já tocava no piano pedacinhos de Madame Angot.
— São horas, vou-me para o serviço, disse o Carvalhosa dando nas testas da familia os tres beijos sacramentaes.
Era do correio havia dez annos, vida trabalhosa mas soffrivelmente paga. N’essa noite tinha de seguir para Elvas em commissão de serviço. Estava-se em fevereiro, tempo humido e lamacento. O Carvalhosa andava um pouco encatarrhoado. Á porta do correio tirou o lenço para se assoar, e á volta para casa caminho do jantar, notou que perdera a carta do tio Sabino. Não lhe deu aquillo grande cuidado, a fallar a verdade. Tinha-a mettido no bolso da ingleza provavelmente, e ao sacar do lenço cahira-lhe. Nunca Deus lhe désse maiores cuidados! Esteve até á noite com a familia, rindo das doidices do Arthur e contemplando com deliciosa emoção de pai, o soberbo grupo de Maria do Resgate com o mais pequenino ao peito. Tivera sempre pelo lar aquella adoração lyrica e sã, que o devotava corpo e alma á familia, e o parecia guiar no trabalho como essas grandes estrellas cujo deslocamento conduz através o deserto as pobres caravanas melancolicas. Era feliz, realmente. Nunca passára os tempos maus de certos desgraçados surprehendidos no berço, pela pobreza arida ou pela desolada orphandade. Perdera o pai quando o emprego lhe rendia quinhentos mil reis, já o Arthur era nascido. Annualmente, nos meados de julho, o tio Sabino presenteava o anniversario do pequeno com uma inscripção de cem mil reis, varias latas de dôce de tijolo, uma duzia de cuias pintadas a escarlate e branco, e basta collecção de plumas e cofres com embutidos indios.
O aceio e o bom gosto de Maria do Resgate rebrilhavam na disposição dos moveis, de uma conservação viçosa, na symetria dos quadros de gravuras ou oleographias, na brancura dos umbraes, na nitidez dos papeis, na graça simples dos reposteiros de cretone e das cortinas de cassa, na harmonia impagavel dos bouquets de rosas e dhalias cortadas no quintal e radiantes á vista em jarras de porcelana esmaltada, sobre a cimalha do velho aparador de carvalho, a preciosidade da casa, que a esposa trouxera.
Desde os quinze annos que tinha sonhado o futuro assim — uma casa limpa, uma mulher fresca e risonha, bons dentes e halito suave, dois pequenos fortes, braços brancos e olho ingenuo, em cujo azul ceruleo revisse, como n’um espelho, a sua ventura pacifica e dôce, de casado. E mais tarde a riqueza bafejal-o-hia, trazida pelo tio Sabino, bom velho cuja solicitude lhe dava uma commoção. Poderia vêr o Arthur n’um palacete de jardins umbrosos e rumores de cascatas, medico ou engenheiro, e de bigode, com um coupé bem polido e uma parelha bem gorda. E o mais pequenino tambem, de militar, com premios e galões, atravessando ao entardecer a Baixa sobre um cavallo branco, no meio dos suspiros das herdeiras ricas. Por esse tempo seria elle um velho e a Maria do Resgate tambem. Vinha-lhe uma pena sincera de não ter vinte annos quando os pequenos os fizessem, uma especie de ciume da intimidade que elles viessem a dispensar aos amigos, e do amor que prodigalisassem infructifero a qualquer dos alegres peccados mortaes de Hespanha, que a mantilha cérca de um prestigio canaille de bacchantes.
Ás quatro horas jantaram. Era uma quinta-feira fria, sol limpido e grande pureza de ares. Ao largo o rio, visto d’aquella altura, tinha um espanejamento de enseada, em leque. Um pano de fundo, de cordilheiras e nuvens ás camadas, cahia de cima fechando o horisonte. Os barcos corriam á vela no rio, e o fumo dos vapores da carreira, ennodoava o azul placido. — Subia o pregão das ovarinas descalças e o rumor dos trens, circulando. Uma especie de bondade despregava bençãos, de cima do azul em cupula, que as pombas cortavam de adejos castos, como lenços saudosos que palpitam, fazendo adeuses á terra.
Abriram uma garrafa de Porto, á sobremesa. O Carvalhosa quiz saber se estava o farnel aviado — partia ás oito horas no comboio de Santa Apolonia, e demorava-se tres dias. — Escusava de gastar no bufete.
— Tanto tempo! disse amuada Maria do Resgate.
Mas era serviço — que remedio senão obedecer…
— E eu que fique sósinha para aqui!
— Manda chamar a tia Prazeres, aconselhou o marido. Já te fica companhia.
— Não está em Lisboa. Foi acompanhar o genro a Villa Franca.
— Ora! tres dias correm n’um momento. Deixa lá, filha.
Bebiam a pequenos goles aquella alegria côr de opala, que polvilhava carmins de vida nas faces e reluzia nos olhos com uma scintilla garota.
— Quando chegará o tio Sabino? perguntou o Carvalhosa.
— Tem tempo, respondeu a mulher.
— Damos-lhe o nosso quarto, quando elle vier. É o mais espaçoso e o que tem melhor papel. Demais fica ao pé da sala…
— Exacto. É preciso comprar dois metros de alcatifa, que a nossa está velha. E outro candieiro, de globo.
— Isso depressa se faz. Estava-me agora a lembrar d’uma cousa, que tinha immensa graça.
— Que é?
— Se elle chegava por ahi ámanhã ou no outro dia; emfim, quando eu estivesse fóra.
— Mas nunca o vi! disse Maria do Resgate.
— Era por isso que tinha graça. As duvidas em que havias de ficar!… Mas espera. E o retrato que vinha dentro d’aquella maldita carta, que perdi? Lá se foi tambem, com os demonios!
— Deixa. Não se perca o tio, o mais não faz transtorno.
— Egoista!
— Tens os olhos luzidios, agora reparo.
— E tu as faces tão córadas, menina!
O Carvalhosa tornou a encher os calices. E tomando o seu, tocou-o com o de Maria do Resgate, para uma saude.
— Pela felicidade dos nossos pequenos! disse o marido.
— Vá lá, acrescentou Maria do Resgate, pela felicidade dos nossos pequenos!
Beberam. Então o Carvalhosa mudou de lugar para vir sentar-se entre a mulher e o Arthur. E baixando a voz disse:
— Sabes que falta uma menina no nosso rancho. Não gostavas?
Ella córou toda, e baixou a vista rindo com os seus dentinhos gulosos.
— Toleirão! murmurou, torcendo-lhe a orelha.
— Arthur! disse o Carvalhosa.
— Papá!
— Ficavas muito contente se eu te desse uma irmãsinha, meu filho?
— Oh papá, eu antes queria um cavallinho. Dê, papá, dê…
— Que destempero! fez Maria do Resgate com um riso dôce.—Eram seis e meia da tarde, noite já.
— Vou vestir-me, disse o Carvalhosa. Pois não sabes? Tenho a cabeça leve. — O corredor estava ás escuras, e os passos do Carvalhosa soavam, já no quarto. Maria do Resgate accendeu uma vela e entrou com o par-dessus de viagem. O marido assoprou a luz, e ergueu-a ao collo, vigorosamente.
— Não faças bulha, que a rapariga está na casa do jantar, segredou-lhe ella toda tremula.
Ás sete horas, o Carvalhosa beijou os pequenos e partiu.
— Ó papá! gritou da janella o Arthur.
— Que é isso?
— Não se esqueça da manasinha, não?
— Já a encommendei, descança.
No dia seguinte, quasi duas horas da tarde, bateram á porta e a criada veio dizer que estava um senhor de idade. Maria do Resgate foi vêr. Apenas ella appareceu, um homem já ruço depôz no corredor uma pequena mala de coiro, e abrindo os braços estreitou com a maior franqueza a pobre rapariga, pespegando-lhe tres beijos muito repenicados nas bochechas.
— Querida sobrinha! querida sobrinha! fazia elle repetindo os abraços, com uma ternura que os seus cabellos brancos tornavam honesta. E detendo-se a notar o embaraço e o rubor da pobre mãi, observou:
— Tu não me conheces, hein? E toda espantada a olhares para mim? Eh! Sou o tio Sabino Pancada, o do Pará, o que escreveu ha duas semanas. Não te mandei um retrato; vê lá se estava parecido, olha bem.
Mais risonha já, Maria do Resgate levou-o para a saleta, bem ao pé da janella, e esteve a miral-o. Era homem alto e magro, maçãs salientes e enormes suiças em cypreste, oculos escuros e cabello á escovinha. Tinha as grossas mãos d’um trabalhador, dedos nodosos e unhas chatas, o olho sereno dos fortes e a pelle requeimada.
— Pois é o tio? disse ella adoravelmente. Ah como estou contente em o vêr, não faz idéa. Tanto que lhe devemos, tanto! Succedeu justamente o que o Alfredo pensava… justamente! Uma cousa assim, não.
— Então que pensava meu sobrinho?
— Hontem á noite, antes de partir…
— Que? fez elle com espanto, penalisado; partiu?
— Ás oito da noite de hontem para Elvas, em serviço do correio. Que elle é do correio, ha mais de dez annos. O tio deve saber.
— Sim, sim, é do correio. Mas que pensava o excellente rapaz?
— Disse-me assim: muito me havia de rir se por estes dias, em quanto eu andava por fóra, te apparecia ahi o tio Sabino.
— A passagem tem graça; palavra que tem!
— E vai, disse-lhe — oh filho, mas eu nunca o vi mais gordo — modos de dizer! — Pois era por isso mesmo que tinha graça. A cara com que tu ficavas!… Porque na verdade não o faziamos em Portugal tão cedo. A carta dizia por estes mezes. Já o tio vê…
— De certo, de certo. Mas uma pessoa não faz sempre as cousas como as premedita, filha. Ás vezes pensa-se assim, e sahe assado. Principalmente no commercio. De modo que recebi um telegramma do meu correspondente em Paris, e tive de embarcar no paquete mais proximo. Cheguei agora mesmo. Venho enjoado do mar e aborrecido da vida a bordo. Que massada, não imaginas! Vossês dão-me cá commodo em casa, como eu lhe mandava pedir? Apesar de viver só no Pará, tenho sempre pena de não haver arranjado familia. É como um homem vive feliz. Eu fico em qualquer canto, não se incommodem vossês.
— Eu mando arranjar o quarto n’um momento. E venha o tio vêr os pequenos, o seu afilhado e a casa. E tomar alguma cousa, que deve trazer vontade.
— Não será mau, não será mau.
— Arthur! chamou toda radiante a Maria do Resgate. — Uma criança appareceu de bibe curto ás préguinhas, todo garrido de rendas e entremeios. Era forte e vermelha, de grandes olhos e bocca pequenina. Tinha uma barretina de cartão na cabeça e uma espada na mão, meias de lã ás riscas, ares de guerreiro victorioso.
— Eh marôto! fez o tio Sabino com um movimento para agarrar o pequeno.
— Quem é, mamã?
— O teu padrinho, pateta; pede-lhe a benção e dá-lhe um beijo.—O pequeno obedeceu.
— Gostas de mim, gostas? inquiria fazendo inflexões ternas de voz, o velho commerciante. — E para o entreter promettia-lhe caixas e caixas de bonitos que trouxera na bagagem, para elle só. Cobria-lhe as faces de beijos, dizendo — pareces-te com teu pai, tens o ar e os olhos da nossa gente, marotinho. E loiro e valente, eh!… — Maria do Resgate dava ordens na casa de jantar, revolvia as gavetas do linho rico para a cama do hospede; ia-se estrear a colcha de damasco amarello, com passaros, que o Carvalhosa adquirira n’um leilão. E dos guarda-louças sahia a melhor porcelana ingleza, quasi transparente, com filetes delgados, de caros esmaltes em mosaico. Quando o tio Sabino entrou na casa de jantar teve como um deslumbramento. As crianças saltavam-lhe nos joelhos fazendo perguntas sobre tudo; as cortinas de cassa afastadas para a banda, deixavam entrar o sol tepido de inverno e a pureza incomparavel do ar. Pelas janellas, abrangia-se o panorama mais vasto e pitoresco da cidade e do rio; os canarios cantavam celebrando a alegria da hora e comendo a alface fresca e tenra presa nos arames das gaiolas; no aparador de carvalho de ferrarias sinzeladas, as frutas e as passas, ás pinhas nos açafates das Caldas e em fruteiras de vidro, sorriam em disposições symetricas; tinham posto flôres frescas nas jarras e descoberto a face de crystal polido do faqueiro de prata em estojo de velludo cereja. Um gosto, um conforto e um aceio aromaticos, pareciam crystallisar n’aquelle interior a felicidade domestica, como um diamante nos tres dentes de um engaste. Havia um só talher, mas as crianças pediram mais lunch e foi preciso para as satisfazer e agradar ao tio Sabino, sental-as á mesa, aos lados do velho, doido de alegria e cheio de commoções de ventura.
— Vossês aqui devem ser muito felizes, dizia elle mirando tudo. Vê-se de tudo isto que devem ser bem felizes. Ah!… eu nunca tive familia, senão criança. Que bem que isto faz!
E dilatado referia a sua historia, os contratempos dos primeiros annos, a avareza febril com que são contadas, embrulhadas e adoradas as primeiras economias, a cidade de projectos construida á medida que se avança no negocio, a doida embriaguez com que se recebem as primeiras felicitações quando nos presentem ricos. Que mundo de aéreas phantasias, que titilamentos de ambição sem termo!…
Por tres ou quatro felizes, sessenta e mais partidos da patria com enthusiasmo, saude e esperanças, e cedo entregues á miseria, ao envilecimento e á morte.—E referia as casas de malta das cidades americanas, onde n’uma promiscuidade ignobil apodrecem dezenas e dezenas de pessoas; os miasmas das respirações accumuladas e dos corpos sem hygiene; as asperas fadigas sem paga, dos miseraveis sem protecção!
O seu ideal fôra sempre um ninho como aquelle de Maria do Resgate, no meio da familia e entre crianças loiras. — Maria do Resgate sorria ás expansões calorosas do velho, satisfeita de o vêr contente e commovida da historia d’aquelle trabalhador infatigavel, que só captára as sympathias da riqueza ao cabo de trinta ou quarenta annos de labuta. Sem querer, tinha reparado n’uma cousa—o tio Sabino não offerecia na pronunciação o menor resaibo brazileiro. O Alfredo apontára-lh’o como homem intelligente e amigo de leituras; bem podia ser por conseguinte, que aquella correcção no dizer, um pouco lisboeta por ventura, fosse esforço de estudo e evidente resultado da resistencia ao contagio. Não pensou mais em tal, d’alli em diante. O chapéo do Chili, as botas de larga tromba, a pelle secca e trigueira, a longa barba corredia e os dentes encravados em gengivas fofas de carie, attestavam de sobejo o negociante do Pará, enriquecido pelo trabalho de toda a ordem, e filtrado durante longos annos, através as gradações, que vão da miseria ao conforto. A refeição durou muito, porque o tio Sabino era fallador, e a cada passo interrompia a mastigação para fazer festa aos pequenos ou dar palestra á Maria do Resgate. Quando se ergueu da mesa, um rubor se lhe alastrára na pelle. Pediu licença para accender o velho cachimbo de cipó, representando um tigre cingido por uma boa, cousa segundo affirmava, sem que não podia passar depois da comida. Foi até á janella, e esteve largo tempo debruçado ante o panorama magnifico da cidade cheia de sol. Tinha nos dedos enormes anneis de brilhantes, e um grosso cordão de ouro lhe servia de corrente de relogio. Os cabellos um tanto raros nas fontes, arripiavam-se-lhe para traz, descobrindo os angulos de uma testa abaúlada, de teimoso. O nariz astuto e cartilagineo era movel nas azas, cahindo aduncamente em gancho. Sorrindo, uma contracção franzia-lhe as commissuras da bocca rôxa. Era antipathico á primeira vista, mas a voz e a palestra insinuavam-se, agradando. Maria do Resgate foi dar a ultima vista d’olhos pelo quarto que a criada acabára de arranjar, e voltou dizendo:
— Que estava prompto e quando o tio quizesse…
O negociante não se fez demorar. Ia mudar de roupa e sahia até ao jantar afim de conduzir as bagagens, e encommendar camisas no Leão da Europa, mais módernas.
— Pois vá, vá, dizia a Resgate, de aventalinho branco. E tagarellando:
— O tio desculpa-me a desordem que vai por essas casas, sim? Como não esperavamos… E demais tenho uns engommados.
O quarto era a alcova do Carvalhosa, forrada de branco, frisos de ouro aos cantos. Ficava ao centro o leito de ferro fundido, ornado da colcha de damasco amarello e envolto nas amplas azas de um docel de casquinha dourada onde dois pombos trocavam beijos. Defronte da janella uma console com pedra branca sustentava um grande espelho oblongo, de moldura negra e serpentinas aos lados. Do outro lado, sobre a banca de noite havia um despertador de crystal e uma palmatoria de prata dourada, com vela. O quarto era contiguo ao toilette de Maria do Resgate, e a porta aberta permittia observar a desordem d’aquelle interior; frascos destapados, sabonetes humidos diluindo na agua das bocetas de porcelana, agua suja no lavatorio, uma caixa de prata fosca representando um pecego, aberta com pó d’arroz á borda do tremó em ferradura; ao canto a banheira tepida exhalando perfumes de agua Farina e vinagre de Lubin, uma duzia de anneis sobre um cofre; escancarado o guarda-vestidos, e uma gaveta aberta mostrando um cofre de joias lapidado, em que as pulseiras, as medalhas e os pingentes se enroscavam tremeluzindo, em volutas de serpente phantastica. Justamente por instincto de vaidade, Maria do Resgate não fechou a porta que separava d’aquelles aposentos o quarto do tio, querendo que elle visse a sua riqueza, pudesse aspirar os perfumes de que ella fazia uso, ficando sciente dos mil cuidados em que envolvia o corpo branco, de burguezinha garrida. Do toilette ia-se para a sala e para o escriptorio do Carvalhosa. Havia no escriptorio um contador de charão com ferrarias maltezas que tinha abertas as portas e a chave na fechadura — era onde se guardava o peculio adquirido e accumulado. O tio Sabino percorreu rapidamente os tres compartimentos, sala, escriptorio e toilette que communicavam entre si, e por onde se podia entrar por duas portas, pela da sala que dava para a escada, e pela da alcova onde elle ia dormir. Bem! Lançou ruidosamente a agua na bacia do lavatorio, tirou o frack de cheviotte cinza, arregaçou as mangas da camisa de chita e atirou com as botas. Lavava as ventas, bufando de satisfação. Dobrou cuidadosamente o fato que despira, e metteu-o na mala d’onde já fizera sahir uma rica farpella de pano preto. Pôz camisa lavada e envergou a farpella nova. Diante do espelho apartou a guedelha, e sacudia a poeira das botorras, cantarolando:
Ai—i—ó—ai!
Quem escorrega, tambem cai.
E paramentado de rico, fez ainda sahir da maleta de coiro uma especie de sacco de lona com fechos e corrêas. Debaixo da cama, por esquecimento tinham ficado as alpargatas do Carvalhosa. O tio Sabino calçou-as, as suas narinas palpitavam. Correu o fecho da porta cautelosamente, foi até ao escriptorio do Carvalhosa e saccou da gaveta do contador uns rolinhos de libras; de passagem pelo toilette arrecadou o cofre de joias, os anneis e a caixa de pós d’arroz; de cima da banquinha de noite desappareceu a palmatoria de prata dourada e tudo foi arrecadado no sacco.
Ai!—i—ó—ai!
Quem escorrega, tambem cai.
Fechou destramente o sacco, tendo-lhe mettido primeiro a camisa de chita que despira, a fim de não tinirem dentro os metaes. E de chapéo á banda e cachimbo na bocca sahiu, o sacco pendente, fechando a porta e tirando-lhe a chave. Ninguem estava no corredor; Maria do Resgate engommava na saleta; as crianças na cozinha cortavam papagaios, chilreando.
— Até logo, minha sobrinha, até logo.
Ella veio correndo, com o seu riso affectuoso.
— O jantar é ás cinco, sim? Mas querendo dá-se ordem para mais tarde.
— Qual! Não temos precisão de incommodos. Ás quatro e meia estou.
Deu-lhe dois beijos na testa, levantou ao collo os petizes dizendo-lhes calinices — a moça abriu a cancella para elle sahir.
— Tenho bem que dar ás pernas ainda hoje, ia dizendo o tio Sabino. Ir á alfandega, ir ao consul, ir á cámisaria, ir tomar midida di roupa ao alfaiate… Até logo, até logo…
E com a mala pendente, o lenço escarlate fóra do bolso do frack e a bengala debaixo do braço, desceu a escada, cantarolando:
Ai!—i—ó—ai!
Eram seis horas da tarde e nada de tio Sabino.
—Talvez se demorasse na alfandega.
Sete horas, e Maria do Resgate acabara de notar a porta da alcova fechada. Diabo!…
No dia seguinte a policia andava em campo para descobrir o larapio, que com tamanha pilheria roubára a familia do Carvalhosa. Nem o habil Antunes, nem o sagaz Castello Branco, nem o astucioso Ferreira conseguiram cousa alguma.
É necessario cuidado com os tios da America.
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José Valentim Fialho de Almeida, mais conhecido apenas como Fialho D’almeida (1857-1911), foi um jornalista, escritor e tradutor pós-romântico português. Nascido em Vila de Frades, realizou os estudos secundários num colégio de Lisboa, entre 1866 e 1871. Empregou-se numa farmácia e formou-se em Medicina, entre 1878 e 1885. Em 1893 voltou à sua terra natal, onde casou-se com uma senhora abastada, que morreu logo no ano seguinte e da qual não teve descendência. Entre as suas obras mais notáveis, encontram-se os cadernos periódicos Os gatos, redigidos entre 1889 e 1894, e A cidade do vício, de 1882.