O papel vegetal para a experiência subjetiva de uma paisagem
Cecilia Arbolave apresenta “Anoitece”, de Marcia Misawa, que revela escolhas precisas numa edição artesanal singela e expressiva
Anoitece no virar das páginas deste livro da Marcia Misawa. Uma paisagem se revela em camadas, as montanhas se manifestam e entramos na noite, com as primeiras estrelas aparecendo no céu. Sem nenhuma palavra, o livro propõe uma leitura lenta.
A escolha do papel na concepção de uma obra impressa é uma variável fundamental do projeto gráfico. Costumo dizer que se quer usar algum recurso específico, vale entender a força que ele carrega para explorar ao máximo suas possibilidades. Marcia Misawa fez isso magistralmente em Anoitece: a aparência translúcida do papel vegetal se mostrou perfeita para trazer a experiência subjetiva de uma paisagem.
O livro tem capa em kraft com o título carimbado. O miolo é impresso em linoleogravura em vegetal, com bordas também em kraft (porém de gramatura menor) na parte superior e inferior de cada página. As páginas finais revelam algumas perfurações em papel colorido na massa. A encadernação é artesanal, com cordas laranjas amarradas no topo.
A inspiração? Marcia responde: “Eu olhava as montanhas da Mantiqueira e meu olhar sempre se perdia nas camadas de montanhas, muito clarinhas e borradas ao fundo, e gradativamente mais nítidas. E ao mesmo tempo, conforme anoitece na Mantiqueira, as estrelas vão aparecendo pouco a pouco, até coalhar o céu.”
“A produção faz parte da autoria do livro”, ela diz. E de fato, o tempo de pesquisa, testes de impressão, montagem das matrizes formam parte da criação daquela obra, com tiragem de 50 exemplares.
Se o papel vegetal é adequado para o projeto gráfico, também trouxe empecilhos. É um material mais caro em relação a papéis editoriais e nem toda gráfica encara a impressão – ou senão cobra caro por isso. A artista visual e ilustradora, então, resolveu aprender gravura em linóleo para fazer o livro. Ela não dominava a técnica, se virou.
“O papel vegetal enrola e enruga miseravelmente, e deixar ele secar foi uma bagunça”, lembra. O drible foi dar acabamento às páginas com tiras de papel kraft, coladas com fita dupla-face, que deixam o papel esticado, trazem mais peso ao miolo e também auxiliam na encadernação.
Aliás, a escolha da encadernação, com nós amarrados de forma rústica, sempre me intrigou. Marcia explica: “O fato de ele ser desajeitado é proposital, para que o leitor precise de uma mesa para apoiar o livro e folhear. Eu precisava que a virada da página fosse muito lenta, no ritmo do anoitecer.” E ela também buscava a simplicidade, “então acabamentos sofisticados ou perfeitos estavam fora de cogitação”.
Além de papel vegetal, Anoitece usa papel preto colorido na massa no final. “As primeiras estrelas que aparecem no céu são as mais brilhantes, e o brilho delas aumenta conforme as outras menores vão aparecendo. Por isso não podiam ser furinhos aleatórios, tinha que funcionar como um stop motion”. Ela usou um furador manual com diferentes tamanhos de círculos e, assim, os furos da frente são menores que os da folha de baixo.
Algumas pessoas podem estar com um livro na cabeça: Na noite escura, de Bruno Munari (1907-1998). E é exatamente essa obra, que também usa papel vegetal, uma das referências da Marcia, assim como o trabalho do japonês Katsumi Komagata (1953-2024), “pela maneira como ele usa o design para trazer à tona o melhor que as pessoas têm dentro de si”.
É de Komagata uma ideia muito presente no seu o processo: o livro delicado também traz um ensinamento importante, que as pessoas precisam aprender a tratar o livro com cuidado para que ele não estrague – e assim também é com o ser humano. “Esse pensamento guiou minhas escolhas para esse livro: rústico, com defeitinhos e diferenças únicas em cada exemplar, delicado, completamente artesanal. Porque o perfeccionismo é o oposto de felicidade.”
Anoitece foi publicado em 2015. Circulou em feiras, vendemos por um tempo na Banca Tatuí e agora está esgotado, sem planos para uma reimpressão — pelo menos, não por enquanto.
Cecilia Arbolave é uma jornalista e produtora gráfica argentina, sócia da Lote 42, Banca Tatuí e Sala Tatuí. Escreveu O livro de fazer livros: produção gráfica para edições independentes (Lote 42, 2024), Sapos e Sonhos (Livraria Gráfica, 2024), entre outros.
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