O homem com um longo bigode
Neste conto de Carlos Machado, acompanhamos o narrador em seu vício de observar pessoas nas ruas e criar narrativas sobre elas, hábito que acaba por se tornar uma obsessão perigosa
Este conto foi publicado em janeiro de 2025 na segunda edição da Revista Julia, da editora Arte & Letra. Ele foi escolhido para o encontro do Terapia Literária da Sala Tatuí do dia 10 de junho de 2025. Inscreva-se em www.salatatui.com.br para receber o link do Zoom.
O meu maior prazer na vida ainda é observar as pessoas nas ruas. Herdei esse costume de uma tia que, logo após ter sofrido um sério acidente de carro — quatro anos depois de eu nascer — ficou impossibilitada de andar e, portanto, não tinha muito o que fazer a não ser ficar sentada em sua cadeira de rodas lendo um livro ou observando as pessoas que passavam em frente à sua varanda. O costume dela me pegou. Comecei então a ficar o dia todo entornando olhares para as pessoas que caminhavam no centro da cidade, tentando descobrir quem eram, o que faziam, por que estariam passando por ali etc. Minha mãe não se conformava com essa “esquisitice” — é isso que ela pensava que era — e por diversas vezes me impediu de ficar sentado no banco da praça Osório olhando as pessoas. Nesses dias, tinha que sair escondido e não ficar sentado em lugar algum para não correr o risco de ser pego por ela. Para despistá-la, eu seguia as pessoas, como um detetive, sem deixá-las saber que estava atrás e sem minha mãe descobrir. Eu era como o homem das multidões do Poe, ou um Flâneur de Baudelaire. Mas conforme fui ficando mais adulto, minha mãe parou de me importunar com essa história e passei, então, a estabelecer observatórios fixos nas praças e ruas mais movimentadas de Curitiba, e um horário. Eu não consigo explicar por que gosto de fazer isso, e para ser bem sincero, por muitas vezes achei que estava cansado dessa vida — poucas vezes, é certo — mas logo via que era impossível controlar esse impulso, então deixava acontecer. São quase trinta anos saindo às ruas religiosamente, quase todos os dias, às cinco horas da tarde. Se para os ingleses esse horário é reservado ao chá, para mim é o momento de imaginar uma vida para os cidadãos da minha cidade. Esse é o meu único vício — tudo bem que na minha adolescência fumava um baseado todos os dias, mas isso já passou e as ruas ainda me carregam, me abraçam, me aprisionam; isso sim é um vício. Ah, eu ia me esquecendo de um detalhe muito importante e que pode ser ainda mais difícil de entender nessa história toda: só me satisfaço observando pessoas em Curitiba! Não importa se são curitibanas ou não — até mesmo porque sou eu quem invento suas vidas — mas tem que ser aqui. Esse detalhe, naturalmente, só era um problema quando eu viajava. A solução era filmar pessoas nas ruas e levar os vídeos comigo — isso explica o “quase”, enfatizado acima. Quando chegava a hora habitual, eu os assistia. Viajei muito na minha adolescência. Hoje não viajo mais. Eu me casei. Minha mulher só descobriu esse lado da minha vida na semana do casamento. Depois de um ano de noivado. A única restrição que me fazia era que o casório teria que acontecer em junho, porque havia prometido a Santo Antônio que quando encontrasse um marido, iria se casar no dia treze de junho, dia desse santo. A princípio não tinha nenhum problema para mim, não fosse o horário que prometera ao tal Santo: cinco horas da tarde! Nesse momento da minha vida, quando estava com vinte e quatro anos, o costume de olhar as pessoas nas ruas de Curitiba já havia extrapolado o vício inocente: era agora uma obsessão vital para a minha existência. Eu precisava ver pessoas e imaginar suas vidas, e tinha sempre que ser às cinco horas da tarde! Tive que, realmente, revelar à minha mulher esse meu problema ou, melhor dizendo, esse meu jeito diferente de ser. Quando contei, ela achou um pouco estranho e até sugeriu que eu fosse a um médico para resolver esse... detalhe. Mas no fim de tudo, consegui convencê-la que isso era bem normal, que observava as pessoas nas ruas desde criança e tudo ficou bem. Não sem antes me perguntar por que não havia lhe contado no início do noivado. É que para mim é tudo tão normal, que não vi necessidade de lhe contar, querida. Não se preocupe. Tá? Mas no fundo, eu sabia que não era normal e que isso estava virando uma doença. Tinha que, portanto, procurar um bom médico psiquiatra para resolver meu probleminha. Mas não fui.
Acho que fiquei meio frustrado com a facilidade com que minha futura esposa aceitou tudo. Esperava uma reação mais enérgica da parte dela. Resolvemos nos casar em uma belíssima igreja no centro de Curitiba — não me lembro o nome, mas sei que era muito bonita — com o altar virado para a rua. Dessa forma, eu poderia jurar fidelidade e amor eterno à minha mulher tendo, ao mesmo tempo, as pessoas nas ruas para olhar.
Em todos esses anos muitos personagens passaram pela minha visão e muitas histórias foram criadas para eles. Muitos tipos: homens que aparentemente estavam bêbados, podiam ser vistos pela minha fantasia como grandes empresários que resolveram se deliciar com os prazeres da cachaça depois de um difícil dia de trabalho; ou então homens extremamente sóbrios poderiam ser pintados como ex-bêbados que criaram vergonha na cara e resolveram tomar um banho, fazer a barba e procurar um emprego; ou ainda mulheres que a princípio me pareciam tímidas, podiam, na verdade, levar vidas promíscuas longe de seus maridos. Enfim, tudo era possível, e essa era a minha necessidade: inventar vidas e situações, apenas com a aparência das pessoas nas ruas de Curitiba. Mas então, e minha mulher? Depois de dois anos de casado, algo começou a me perturbar: mesmo dizendo que aceitava essa minha vida numa boa, percebia que ela não gostava muito das cinco horas da tarde, quando eu saía para viver e fazer vidas. Ela sempre se despedia de mim e ia para a cozinha cabisbaixa, preparar meu jantar, e nunca comia comigo, pois ia para a cama antes que eu chegasse. Mas com o tempo, comecei a notar uma mudança progressiva nessa sua atitude: quando chegava a hora de eu sair para as ruas, não ficava mais chateada, muito pelo contrário, abria a porta para mim toda sorridente, me dava beijinhos mil, dizia que me amava, que me esperaria para o jantar... Tchau, querido. Boa sorte. Bem, uma pulga começava a morar atrás de minha orelha, mas assim que chegava às ruas, logo acabava esquecendo. Depois de mais alguns meses de casado, acabei me acostumando com essa nova atitude de minha mulher. Essa era a minha vida. O meu vício, que apesar de ter se tornado algo impossível de se controlar, ainda não havia afetado meu lado psicológico drasticamente. Havia se transformado em um hábito e, como todo hábito, bom ou ruim, era mecânico. Sendo assim, eu ia para as ruas ver pessoas, assim como escovava os meus dentes ou tomava meus banhos: naturalmente. Era extremamente normal. Até que um dia às cinco e quinze da tarde vi um homem com um longo bigode — como aquele que Paulo Leminski usava, sabe qual? — que me chamou a atenção não sei por quê. Talvez pelo fato de seu rosto ser bastante familiar. Desde os meus dez anos de idade eu não perseguia as pessoas na rua, só ficava sentado na praça Osório sem ir atrás de ninguém. Mas nesse dia — quando já contava vinte e sete anos — não me controlei. Na verdade, acho que nem quis me controlar, levantei e comecei a andar atrás de seus passos, tomando o velho cuidado de não deixar minha “vítima” descobrir que estava por perto — como um detetive. Seu rosto, apesar de eu não ter percebido o que, até então, tinha realmente qualquer coisa de familiar. Pensei: seu nome era Cristóvão, tinha uns 32 anos e estava com pressa porque acabara de assaltar um livro na livraria do Chain. O livro era o italiano Noturno Indiano do Tabucchi. Estava dentro de sua bolsa, junto com muitas barras de chocolate Lacta que furtara das Lojas Americanas momentos antes de roubar o livro. Estava usando um belo terno cinza Giorgio Armani para não despertar desconfiança, mas que, na realidade, também havia sido roubado. Parece que conheço esse cidadão. Mas de onde? Continuei seguindo o Cristóvão. Ele passou em algumas lojas de roupas femininas na Rua Quinze — talvez fosse roubar calcinhas para sua mulher — em várias lojas de CDs e, finalmente, entrou no Shopping Curitiba indo direto ao banheiro. Mas que estranho, ele está entrando no banheiro feminino! Acho que é melhor chamar o segurança. Pois é, amigo, eu armei uma confusão homérica naquele lugar: fiz os seguranças entrarem no banheiro feminino atrás do homem. O problema é que acho que misturei a fantasia com a realidade: esse homem, ao invés de se chamar Cristóvão e ser um ladrão, poderia ser um ótimo cidadão e ter qualquer nome do mundo. Portanto, o fato de ter entrado no banheiro feminino poderia ter sido nada mais do que um simples engano. A vida que inventei para este cidadão parecia ter se tornado realidade para mim. Bem, sabe o que aconteceu? Ninguém encontrou esse tal homem com um longo bigode vestindo um Giorgio Armani. Ele havia desaparecido. Será que era a minha fantasia? Onde se meteu? Até hoje de manhã, quase três anos depois, não consegui entender o que havia acontecido naquele dia. Aquele homem já cruzou pelo meu caminho muitas vezes depois daquele dia, mas logo que aparecia, sumia na mesma hora. E tem mais uma coisa que me deixou perturbado no dia em que o homem entrou no banheiro feminino: encontrei minha mulher saindo do banheiro momentos antes dos seguranças entrarem no banheiro. Quando me viu levou um baita de um susto e ficou toda sem jeito, tentando esconder uma bolsa nas suas costas. Ela me explicou que havia saído para comprar umas lingeries para usar na noite de aniversário do nosso casamento que estava se aproximando e que também aproveitou uma promoção nas livrarias Curitiba e comprou um livro do Antonio Tabucchi para mim. Isso foi muito estranho: eram os mesmos objetos que imaginei para o homem! E é estranho também a presença de minha mulher por lá: ela nunca saía de casa nesse horário, ainda mais para comprar lingeries e livros. Ela sempre ficava me esperando em casa. Tinha medo de sair à noite! Mas não são todos os dias que as mulheres compram lingeries. Só em ocasiões especiais. E pelo que percebi, essa era uma ocasião especial. Não se preocupe quanto ao fato de sua mulher ter aparecido no shopping naquele momento, você tem que se preocupar é com o homem que só você viu. Isso foi o que o médico me disse no dia seguinte em seu consultório. Fui ao psiquiatra. Ele me receitou um remédio. Achava que eu estava tendo problemas de tanto inventar histórias para as pessoas na rua. Na época não dei muita importância. Isso aconteceu há três anos. Não tomo mais o remédio. E sabe quem eu vi ontem ( às cinco horas da tarde ) e segui por alguns minutos? O homem com um longo bigode, lógico! Minha mulher, como da outra vez, apareceu logo que ele se foi, e novamente utilizou-se da mesma desculpa. Só que dessa vez, tentou ir atrás do homem. Não o encontrou. Não consigo entender por que quando o vejo, some na mesma hora sem ninguém ver para onde foi. Por que somente esse homem? Será que é porque seu rosto é tão familiar? Quem será? Por um momento, ontem à noite, depois de ter visto aquele homem, pensei em parar de ir às ruas observar as pessoas. Ele me deixa nervoso e muito intrigado. Mas não basta apenas querer parar de ir às ruas, não consigo evitar. Se ao menos pudesse falar com ele, mas todas as vezes que tento me aproximar ele desaparece! Porém, hoje de manhã, acordei com uma vontade incrível de sair às ruas. Passei o dia contando os minutos para as cinco horas da tarde. Quando faltavam poucos minutos, saí de casa, e como é de costume nesses últimos anos, minha mulher parecia feliz. Abriu a porta. Boa sorte, querido. Sim, vou precisar de toda a sorte do mundo para encontrar e falar com o homem do bigode. Tem certeza de que não precisa de minha ajuda, amor? Sim, não preciso, obrigado. Olhei para as nuvens escuras e carregadas e vi que tinha que me apressar para chegar à praça Osório antes que começasse a chover. Esse tempo meio chove-não-chove de Curitiba pode me atrapalhar na busca pelo homem, mas não há de ser nada, se eu não o encontrar hoje, um dia ele há de aparecer novamente. Que otimismo meloso! Estava chovendo. Andei debaixo dos toldos das lojas esbarrando nas pessoas. Passei por muitos personagens de minhas histórias. Alguns me conheciam há anos, outros vieram morar nas minhas invenções sem nunca sequer terem me visto. Continuei caminhando entre as pessoas. Dois meninos totalmente ensopados pela água da chuva, passaram correndo por mim espalhando pingos de água pelo caminho e ouvindo muitos palavrões dos pedestres que tentavam, sem sucesso, manterem-se secos. Continuei andando. Olhei para o relógio. Me senti aflito. São cinco horas. Portanto, mesmo andando comecei a me alimentar de histórias e fantasias. Uma mulher que estava na minha frente andava bem devagar. Logo pensei: não quer chegar tão cedo em casa porque sabe que seu marido vai sair do trabalho, passar em um botequim, ficar bêbado e esmurrá-la, reclamando da comida fria sobre a mesa. Isso já virou um hábito diário em sua vida. Dona Joana não aguenta mais essas atitudes de seu marido, mas ainda o ama. O homem ao meu lado, cheio de pressa, precisa correr para buscar seus filhos na escola e ainda passar em uma panificadora para comprar pão e leite. Esse homem tem uma vida feliz junto à sua esposa e filhos.
A chuva passou e continuei andando. Vi uma confusão na esquina. Consegui me aproximar. Presenciei uma cena horrível: aqueles meninos que passaram por mim correndo quando estava chovendo estavam estendidos no chão, um sobre o outro, envoltos a muito sangue. Muitos curiosos ao redor falavam pelos cotovelos, tentando explicar o que havia acontecido: foram atropelados. O carro era um fusca. Meu carro! De início não pude identificar quem estava dentro dele. Mas ( pensei ) só pode ser minha mulher. Sim, era ela. E não estava sozinha. De repente, percebi que além dela, alguém mais estava saindo do carro, mas ainda não havia visto seu rosto. Tinha muita gente na minha frente. Sem demorar, e invadido pela aflição, adentrei à multidão e o vi: estava usando minhas roupas. Reconheci: era o homem com um longo bigode. Olhei bem nos seus olhos e me apavorei. Meu Deus, esse homem... esse homem sou eu! Com o olhar apressado procurei por minha mulher: estava quase desfalecida chorando ao lado dos corpos dos meninos aparentemente sem vida. Querido — sua voz estava pálida — matamos duas crianças!
Voltei-me ao homem: não estava mais lá.
Carlos Machado nasceu em Curitiba, em 1977. É escritor, músico e professor de literatura. Publicou os livros A voz do outro (2004), Poeira fria (2012), Era o vento (2019), Olhos de sal (2020), Flor de alumínio (2022), Imagem invertida (2023), entre outros, e participou de revistas, jornais literários e antologias. Foi finalista “Off Flip” 2019 e 2021, semifinalista no “IV Prêmio Guarulhos de Literatura” (2020), venceu o “Outras Palavras”, da Secretaria da Cultura do Paraná (Lei Aldir Blanc, 2020) e foi 2o lugar no “Concurso Literário da União Brasileira de Escritores do RJ” (2021). Como músico, entre diversos trabalhos, tem 6 CDs autorais lançados.