Fio
Neste conto do escritor goianiense Fred Gondim, somos levados a uma casa no fim do mundo onde flores nascem do sangue, a chuva desmonta as estruturas e a saudade de alguém é costurada por muitos fios
Este conto foi publicado em 2024 no livro E restou à pele se desprender, da Negalilu Editora. Ele foi escolhido para o encontro do Terapia Literária da Sala Tatuí do dia 22 de abril de 2025. Inscreva-se em www.salatatui.com.br para receber o link do Zoom.
Quando o tempo levou Ariana, caminhei descalça por um labirinto de árvores, odores e sons indomáveis. Segui por dias e noites, cascatas e rios. Espirais e desencontros, saídas escondidas nas frestas de paredões rochosos. Vim para o fim do mundo só com a roupa do corpo e a caixa de linhas que Ariana tinha sempre à mão. Um vilarejo de poucas almas e poucas palavras e, logo além, um mar silencioso que se abria indefinidamente sob o abismo. Parecia fazer tão pouco tempo. Parecia tempo nenhum. É como se toda a vida houvesse serenado, à maneira dos sons da floresta à noite, com seu minimalismo e inviolável mistério. Pequenas asas de insetos, botes às escondidas, a confecção de teias pacientemente calculadas.
Eu era urutau sobre os troncos caídos, uma não existência à maneira desses espíritos da fazenda do meu pai.
É como se a vida houvesse adormecido. Eu não soube mais do tempo. Havia apenas a casa esquecida a poucos metros do abismo, e eu não soube mais do mundo. Apenas que minhas oito mãos se acostumaram aos gestos cansados. Quarenta agulhas enferrujadas que teceram primeiro um jardim de pedras e sobre ele uma pequena coluna quebrada, depois um oratório ao seu lado, sem santo ou céu de cores numinosas. Em algum momento, a saudade se infiltrou pela casa. Uma linha azul-marinho serpenteava, seguindo meus pés pelo chão e avançando sobre os tijolos das paredes, onde quer que minhas oito mãos tocassem. Subiu e desceu as escadas, contornando os passos calejados. A ausência de Ariana furava meu corpo duro, e seria questão de tempo até que a casa inundada desabasse.
Noutro dia, encontrei um rolo de linha preta para confeccionar uma coroa de flores. Deitei-a ao lado da coluna quebrada, mas quando ia coser o nome sagrado, a linha chegou ao fim. Incomodada, desfiz a trama do oratório, cortei os dedos aqui e ali. Das gotas de sangue, nasceram flores no fim do mundo. Não havia flores naquela lonjura, mas da seiva rubra brotaram rosas de tons tão vibrantes que eu mal suportava contemplar sua beleza. Uma vermelhidão que escorria vida sobre todos os tons ocres e encharcava a terra. Sentia tontura, quando me aproximava, para tocar cada pétala pulsante e a trama inspiradora das rosas sanguíneas. Desistia, por vezes, e me refugiava de volta na casa alagada. Vasculhei a caixa de linhas, queria um tom doce para jardinar a solidão, mas as linhas eram quase sempre durezas ou pântanos. Desbotaduras. Com estas costurei remendos, atei tijolos, coração, tentei salvar a casa.
Acordei com a chuva e o estrondo. O telhado havia começado a ceder. Tentei agarrar a caixa com os últimos rolos de linha, mas minhas mãos tremiam. Como me fazia falta a força de Ariana! Como me afogava a falta! Um nó na garganta, a caixa escapuliu, e as linhas escorreram para todos os lados. O deságue do céu veio com toda a força que eu não conhecia, e a casa começou a convulsionar. Minhas mãos insistiam em qualquer lembrança. Ariana! Ariana! Catei uma coisinha qualquer, enquanto a água me levava pelas escadas, onde a rota da dor já havia sido traçada em nuances de azul abissal. Por onde a chuva arrastou meu corpo, tudo começou a se desmantelar, degrau por degrau. Desesperei-me: a caixa e as linhas haviam ficado lá nas alturas, prontas a ceder e maiores que meu corpo. Corri em qualquer direção e sem porquê. Talvez apenas quisesse viver mais um pouco. Não sei quanto tempo, não sei que dia era, quantos anos tinha meu corpo. Corri, mas, além de minha casa no fim do mundo, havia apenas um mar sem fim. O vento era insuportável, me empurrando ora para o abismo, ora para longe dele. Ariana! Ariana! Não me deixe, mesmo que eu tenha que te dizer adeus!
Notei o punho cerrado. Mal conseguia abrir meus olhos na tempestade, mas discerni em minha mão um pequeno objeto: um rolo de fio dourado. Não me lembro de haver visto algo tão belo na caixa. Tentei caminhar em direção a casa, que não existia mais, e tudo o que distingui por onde os escombros se espalharam foi o brilho carnal das rosas, pulsando no desmanche completo da paisagem. Caminhei com pés cansados, lágrimas nos olhos, pernas pesadas, sem saber qual o sentido em caminhar, e, próxima às rosas, estava a pequena coluna quebrada. Circundei-a com o fio cintilante, atei o nó e segui na contracorrente, porque era a única coisa a se fazer depois do fim do mundo. Descalça, desenrolando o fio pelo vilarejo dos mortos, pelos desencontros e espirais, rios e cascatas. Marcando a minha trajetória, acaso me perdesse pelos sons, odores e árvores. Por dias e noites, segui.
Quando o tempo me trouxe de volta, senti a doce certeza de onde me levaria a trilha que cintilava atrás de mim. Então mordi o fio e o rompi, para nunca mais voltar.
Fred Gondim nasceu em Goiânia, é aluno no doutorado em História na Universidade Federal de Goiás e empregado público. Segundo ele, com os livros, aprendeu a abrir “pequenas fendas de liberdade na Matrix”.