Entre o narrar e o não-narrar: livros que brincam, livros que informam
Por Peter O Sagae
Sempre é desafiador preparar um tema para a “aula-aperitivo”* que antecede a nova temporada do curso Escrever para Crianças, na Sala Tatuí. Se tenho liberdade para escolher um assunto, existe igualmente a expectativa de uma dança mais ou menos ensaística... e tropeçar!
Isso acontece desde 2020 e torna-se inevitável lembrar alguns passos e passeios, ao iniciar com uma abordagem sobre a memória pessoal como matéria literária, no balanço entre a mentira e a imaginação e, então, em 2023, sintetizar grande parte da escrita de literatura infantil como memória imaginada. Já em 2021, elaborei uma lista de gêneros literários para um tempo de pandemia, numa tentativa de coletar narrativas mais favoráveis para a leitura em momentos de medo e sentimentos ambíguos. Fábulas, farsas, enigmas, contos de terror e mistério, tramas policialescas, realismo mágico?
Pois bem, talvez possamos reatar esse fio, ao considerar a literatura e os livros para crianças, entre o narrar e o não-narrar, pensando se temos ainda necessidade de uma história, do enredo e da trama, senão colocar de lado longas narrativas... Gostaria de preparar uma seleção de dez títulos para exemplificar tal ideia. Seria possível? O leão urge, cada autor ruge suas necessidades, quando não se rala nem farfalha suas fantasias mirabolantes... Por ora, o que pretendo é esboçar provocações que deverão ser amarradas até o encontro previsto para o mês de abril.
No último capítulo do livro Como e por que ler a literatura infantil brasileira (2005), Regina Zilberman assinalava diferentes marcas da produção contemporânea (remetendo-nos a publicações das décadas de 1980 e 1990) que indiciavam o esgarçamento ou a rarefação da narrativa. A estudiosa da estética da recepção pontuava procedimentos como a duplicação de tramas, a metalinguagem, uma intensa interlocução com o leitor, um mastigar intertextual que iria além da mera citação de textos do passado, estabelecendo um jogo de retomadas e deslocamentos.
Sua descrição partia do livro de Ricardo Azevedo: Um homem no sótão (1982) e lograva alcançar O próximo dinossauro, de Roger Mello (1998), em meio a alguns exemplos de emulação do universo e das vozes de Monteiro Lobato e Sylvia Orthof, deixando-nos a impressão de que a literatura nacional para crianças e jovens estaria (permanece?), como a própria teoria, em um rodeio que não conduz a lugar nenhum. Ao mesmo tempo em que domina a circularidade e outras formas de espacialização da narrativa, ouso dizer, que, dentro de tal armadilha, existe algo de palíndromo estendido à narração; portanto, há passagem para a poesia.
E essa é uma das funções de linguagem estabelecidas por Roman Jakobson: a função poética, com a qual poderíamos ver a projeção do eixo paradigmático (escolhas, repertório) sobre o sintático (da ordem e da contiguidade). A ‘nova ordem’ estaria no empilhamento de referências que exigem sequências menos aceleradas, onde o leitor-apreciador veria muito mais andaimes de histórias, onde tudo seja, onde tudo esteja concatenado em planos e intersecções. Apesar disso, impõe-se uma curiosa dromologia ou circuito onde o leitor é chamado a imprimir seu ritmo, ou seja, onde a escrita, a confabulação de imagens e a leitura criativa venham responder por uma velocidade crescente ou desacelerada a fim de captar informações e expandir a interpretação, as interpretações.
Complicado? Talvez.
Meus olhos e ouvidos pensam nessa questão como um ritmo de edição, na escolha de palavras, na distribuição de imagens, no desdobrar das páginas. Lento ou galopante, como dar ao leitor a precisão que seus passos devem tomar? Qual o ponto de interesse em meio a multiplicidade? Existe receita? Experimentação?
Na surdina dos discursos mais entusiasmados com a literatura para as infâncias, temos verificado certo grau de empobrecimento da literatura e dos livros para crianças (arrisco a dizer) nos últimos vinte anos. Isso se dá, como constante busca de simplificações que falseiam a arte e o pensamento sobre as coisas do mundo, via politicamente palatável, na ostentação de um repertório rame-rame que atenda a muitos ao mesmo tempo! Assim, a leitura em voz alta da mediação tem se convertido igualmente a um sortilégio de censuras veladas e desveladas, contra a realização do literário. O mágico não é mágico.
E o paralelo é claro: o que seria o momento particular e intransferível da leitura sofre com a substituição da escolha mais pessoal por uma visão de mundo mais curta, porque pretende abranger um horizonte de experiências já conhecidas, em que todos se veem no mesmo lugar, por assim dizer. E isto nos faz esquecer o brincar da literatura com a própria literatura. Quando se abandona uma fala lúdica ou polêmica, à frente do que é tradicionalmente estabelecido, estamos tão só reiterando um discurso autoritário com ares de leveza. Ora, ditando regras, ora disfarçando-as com a reprodução de modelos, instigando modas, maneirismos e tendências; também oferecendo soluções que objetivam a velocidade de um tempo contrário à própria arte, regulados a curiosidade e os sentimentos pelo consumo bem comportado, padronizado, sem compromissos.
(Imagino que isto se chame coerção social, replicada numa ingênua roda de leitura; segundo antigos filósofos, media-se a extensão de uma cidade pelos limites alcançados pela voz de um orador... a quem todos deveriam seguir.)
Não é sem propósito que evoquei o capítulo quinze do livro de capa verde de Regina Zilberman. Ele nos interroga: Para onde vamos?
Se a narrativa na literatura para crianças tornava-se rarefeita, permitindo a intrusão de vozes, discursos e outros procedimentos que os estudos bakhtinianos denominam como carnavalização, em conjunção com a paródia e a paráfrase, negar, pois, a folia de referências literárias e outras séries culturais, certamente, pode nos conduzir ao esvaziamento do lúdico e do estético. Sinto como muitas histórias vêm se tornando brandas nos enredos, até mesmo mais abstratas, com atores sem nomes, lugares sem paisagem, tempos indefinidos. A questão que refaço é esta: qual a cor da escrita literária, entre o narrar e o não-narrar?
Meu convite, para o outono que se aproxima, se estende por outros gêneros textuais, como a crônica, a biografia, diários, os brinquedos falados (que certamente nunca saíram da mente e da boca das crianças), adivinhações, verbetes de enciclopédia, anedotas, aforismos, écfrases, colagens, pastiches, leitura e releituras, as escritas automáticas, como se possível fosse escrever-sem-escrever, os informativos desinformativos, onde tudo venha a ter uma pitada de ironia e jogo de palavras para nos acordar da linguagem cotidiana.
Peter O Sagae tem formação em Rádio e TV, mestrado e doutorado na área de Letras pela USP, pesquisando o intercâmbio palavra-imagem nos livros de literatura para crianças, tendo atuado no ensino superior e cursos de formação continuada. Idealizou o portal Dobras da Leitura (2000-2012), criou o curso-oficina Escrever para Crianças (2014), vindo então a interessar-se pelas publicações independentes; integra o coletivo 2 no Telhado e ainda participa da elaboração de resenhas para o Clube de Leitura Quindim. Em 2023, fez a curadoria da mostra de ilustração para a 13ª Traçando Histórias, da Feira do Livro de Porto Alegre. Dentre outros, publicou Bartolo Burtopelo (2016), Uma noite para João (2017, Seleção Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio), Ah! Essa eu sabia (2018), A árvore dos livros de imagem (2018), Um dia, o diabo aprende (2018), Quitéria vai à guerra (2022). Outra paixão são as traduções de Beatrix Potter, Carmen Bernos de Gasztold, Edgar Allan Poe, Elina Segodnya, Eva Montanari e Fadwa Tuqan. Em 2024, em parceria com as Edições Barbatana, recebeu dois selos “Altamente Recomendável” da FNLIJ e o Destaque Emília, com os livros Coisa, coisas e A história da senhora Tiggy Tipico.
* A aula virtual e gratuita “Entre o narrar e o não-narrar: livros que brincam, livros que informam”, com Peter O Sagae, acontece no dia 10 de abril, às 19h. Inscrições no site da Sala Tatuí.