Domingo
Neste conto, a escritora italiana Natalia Ginzburg narra um domingo atípico, onde, de forma sutil, são reveladas pequenas tensões, como o vazio emocional e a monotonia das relações familiares
Este conto foi publicado em dezembro de 2024 no número 28 da revista Cadernos de literatura em tradução, da Universidade de São Paulo, com tradução de Iara Machado Pinheiro. Ele foi escolhido para o encontro do Terapia Literária da Sala Tatuí do dia 3 de junho de 2025. Inscreva-se em www.salatatui.com.br para receber o link do Zoom.
Toca o telefone e uma voz lhe diz que houve um acidente de carro, uma das filhas da sua esposa se machucou, a segunda, Donatella, talvez tenha sofrido uma leve concussão. Podia ser pior, bateu a cabeça em uma pedra. Aqueles malditos holandeses. Hospital San Camillo, sétimo pavilhão, último andar. A voz é enferrujada, sufocada, abafada, não dá para entender se é de homem ou de mulher. Não faz cerimônia. Chama-o de engenheiro. Rápido, engenheiro, venha logo. Traga dinheiro. Vivo. Melhor dinheiro vivo. É necessário para pagar o depósito. Ele diz que não é engenheiro. Nem nunca foi. Ensina desenho em uma escola técnica. A voz já não está mais lá. Ele fica parado, no vestíbulo, com o telefone na mão. Ainda está meio adormecido. São cinco horas da manhã. Chove forte.
É um homem de baixa estatura, tem os cabelos pretos, cacheados e híspidos, barba preta e cacheada, dentes cândidos. Está com os pés descalços, um amarrotado pijama azul. Está separado da esposa há dezoito anos. Viveram juntos apenas por um ano. Tudo o que diz respeito à sua esposa o deixa inquieto e cansado.
Toca de novo o telefone e dessa vez é o namorado de sua esposa, o pai das últimas duas filhas, um diretor de televisão, que se chama Ludovico Aliotta. Pergunta se ele sabe de alguma coisa, o que foi esse acidente de carro, aconteceu alguma coisa com Loredana, com Donatella, uma voz tão estranha, tão rouca lhe telefonou. Precisam de dinheiro, disse a voz. Faz cinco meses que não está mais com Loredana, porque era uma vida impossível, mas isso não vem ao caso, melhor vivo disse a voz, mas dinheiro ele não tem nem vivo nem morto. No momento não tem nada. Não saberia nem mesmo como arranjar, hoje é domingo, está no campo, numa casa que lhe emprestaram, uma casa muito estranha, construída como se fosse um bunker, no meio do nada. Precisa terminar um trabalho. Está na frente da máquina de escrever há horas. A casa fica numa espécie de desfiladeiro, tem o bosque e tem o rio, e nenhuma alma viva ao redor. Escuta o gorjeio dos pássaros.
Ele bate na porta do quarto onde sua irmã e sua mãe dormem. Sua irmã Cristina aparece, com um pijama rosa de flanela que parece um pijama de criança. Sua mãe aparece, com o seu roupão cor ameixa, e a sutil trança branca brotando da cabeça. Meu Deus. Um acidente de carro. Mas quem dirigia, era Loredana que dirigia. Não se sabe. Muitas vezes uma concussão não é nada, a palavra que assusta. Vá logo. O que está esperando. Ele diz a Cristina que o acompanhe com o seu carro. Diz a ela que pegue todo o dinheiro que tem em casa. Tem cem mil liras em casa. Cristina não as dá, porque diz que ele vai perdê-las, e as enfia no sutiã.
Ele se veste. Não toma banho, mas despeja muitos copos de água nos cabelos, porque se sente limpo quando está com os cabelos molhados. A mãe lhe serve café. Donatella se machucou, diz a mãe, mas qual delas é Donatella. Ah sim, é aquela dos cabelos vermelhos. Aquela do olho torto. Cristina lhe dava aulas de latim ano passado. Que estranho, disse a mãe, quando estava com você, Loredana não queria ter filhos, ai de quem lhe falasse de filho. Depois teve seis, todas meninas, uma atrás da outra. Começou logo, assim que te deixou. Com tantos homens diferentes. A primeira é do Cicagna. Depois duas são do Maurizio Masei. Masei é muito rico, e não lhe dá uma lira sequer. Dinheiro, Loredana sempre vem pedir aqui. Depois, a quarta, não se sabe de quem é, um mistério. Mas duas são do Aliotta.
Cristina está pronta. Usa uma jaqueta verde grama de malha, com um capuz pontudo e uma grande margarida bordada no bolso. Cristina sempre se veste como se tivesse seis anos de idade. Caminham, ele e Cristina, debaixo do guarda-chuva de Cristina pequeno e redondo, marrom com flores laranjas. Chove forte. O carro de Cristina está estacionado em Ponte Milvio. “Donatella, ano passado dei aulas de reforço para ela – diz Cristina – Meu Deus. Vamos torcer para que não seja nada. Uma menina tão graciosa. Afetuosa. Loredana não é nada afetuosa comigo, mas a filha é. Você acha que Loredana se lembrou de me mandar um agradecimento, depois de todas aquelas aulas gratuitas? Que nada. Não mandou nada. Nem meia linha, nem meia rosa. É o que manda a etiqueta. Mas é esnobe. Loredana é esnobe. É uma esnobe às avessas. Ama os esfarrapados. Acha que sou uma burguesa. Uma burguesa caduca. E, no entanto, sou mais nova que ela. O que é aquela casa. A cozinha está sempre cheia de gente. Estudantes, braceiros, mães adolescentes, bebês que gritam, desconhecidos”. No Hospital dificultam a entrada dos dois, não é o horário de visitas, finalmente entram. Cristina lembra que conhece um médico do segundo pavilhão, vai procurá-lo porque sempre pode ser útil, ele espera no jardim e então vê Loredana se aproximar, mancando na chuva, com uma saia preta, longa até a altura do calcanhar, uma camiseta branca decotada, os cabelos cheios cor de fogo que caem sobre seus ombros arredondados. Beijam-se, e por alguns minutos ele acolhe em seus braços o corpo grande, pesado, os seios quentes e pesados, os cabelos quentes e secos, por alguns breves minutos ele se lembra do tempo em que se amavam.
Atrás de Loredana está a filha Donatella, uma menina de doze anos alta, gorda, com um macacão, o olho torto, o cabelo que é uma nuvem de fogo. Não tem nada, e a mandaram para casa. Não sofreu uma concussão. Está com um pequeno curativo no meio dos cabelos, levou três pontos, a palavra “concussão” foi dita aleatoriamente por uma enfermeira, enchendo a sua mãe de pânico. Está com fome. Queria um chocolate quente e um croissant. Atrás de Donatella está uma velha senhora baixa e larga, vestida com um conjunto violeta, que lhe é apresentada como a senhora Pasubio, uma amiga. Com a voz abafada a senhora diz “olá engenheiro”. Ele diz que não é engenheiro. Não faz diferença, o importante é que você está aqui. Chega Cristina que falou com o seu amigo médico, e o fez escrever um bilhete de recomendação aos médicos do sétimo pavilhão, porém não é mais necessário, não precisa mais.
Saem do hospital e vão a um café. Sentam-se e Loredana diz que o dinheiro vem a calhar do mesmo jeito, porque entre uma coisa e outra, a ambulância etc., acabou ficando sem nada. As cem mil liras são transferidas do sutiã de Cristina ao sutiã de Loredana. Simultaneamente falam do acidente, Loredana e a senhora Pasubio, a voz abafada se misturaà voz robusta e sonora de Loredana. Já Donatella fica calada, e mergulha o croissant no chocolate. Malditos holandeses. Foram a Rieti, Loredana, Donatella e a senhora Pasubio, para o festival da canção. Deviam pegar o trem ontem à noite, para Roma, e no entanto conheceram três rapazes holandeses numa pizzaria, e eles ofereceram levá-las a Roma com uma Land Rover. Chovia e de repente a Land Rover derrapou, rodopiou e capotou em um canteiro. Apareceu um pessoal, um senhor gentil com uma settecentocinquanta as tirou de lá. Donatella estava com o rosto ensanguentado. Depois a senhora Pasubio se deu conta de que a carteira com sessenta mil liras e as chaves não estavam em sua bolsa. Tem a impressão de que os holandeses pegaram a carteira quando recolheram a sua bolsa. Loredena está com um roxo enorme em um dos joelhos e por isso está mancando. Mas como tudo foi horrível, a noite, a chuva, mesmo os acidentes pequenos dão angústia. E o que aconteceu com os holandeses, pergunta Cristina. Nada, estavam bem, ficaram lá junto a Land Rover toda quebrada, com a polícia rodoviária, na chuvarada.
Cristina pondera que nunca é bom entrar no carro de estranhos. Não dá para saber como os estranhos dirigem. A senhora Pasubio lhe responde que hoje em dia muita gente viaja de carona, porém. O pior é que ela perdeu as chaves de casa, e agora precisará quebrar um vidro para entrar em casa, passando pelo terraço de um vizinho, e em casa tem um filhotinho, que lamenta deixar tanto tempo sozinho. Chama-se Amor. Todos entram no carro de Cristina, e a senhora Pasubio pondera que talvez não deveria entrar, já que Cristina é uma estranha para ela. Cristina lhe responde que pode sair se quiser. Mas a senhora Pasubio não deseja sair e quer chegar logo para ver o seu filhotinho Amor.
A casa da senhora Pasubio fica em Via dell’Anima. Depois de a terem ajudado a entrar em casa quebrando um vidro e forçando a persiana, ele queria ir embora mas há muitas roupas penduradas na sala da senhora, são roupas usadas, que ela vende, e Cristina fica curiosa. A senhora Pasubio tem uma pequena loja de roupas usadas, ali pertinho, em Via della Stelleta, e bastante gente tem aparecido, mas ela vende pouco, porque não ama a especulação. Enquanto fala, tritura biscoitos numa tigela de leite para o filhotinho, um pequeno pastor ofegante e barulhento, e ao mesmo tempo fuma, e ao mesmo tempo escova os cabelos grisalhos, cacheados e curtos. Donatella se aninhou no sofá e pegou no sono. Loredana observa o seu joelho, o grande roxo, a meia rasgada. Cristina diz que ela nunca vestiria roupas usadas, porque não importa o quão desinfetadas sejam sempre lhe parece que mantêm cheiros antigos, e a senhora Pasubio lhe diz que está enganada, porque hoje em dia muita gente se veste com roupas usadas. Sugere que Cristina experimente alguma peça. Diante daquelas roupas usadas, Cristina se sente enojada e intrigada. Por fim segue a senhora Pasubio até o quarto onde tem um espelho, leva algumas roupas para experimentar e de vez em quando reaparece na sala para Loredana ver como ficou.
Ele pergunta a Loredana se não precisa voltar agora por causa das outras meninas. Não, diz Loredana, as meninas pequenas não estão em casa porque foram visitar uma amiga de escola em Ostia e só voltam amanhã, e a mais velha, Alfia, aquela que tem dezesseisanos, está dando uma festa naquele dia e convidou trinta colegas, por isso hoje a casa está uma bagunça e então quanto mais tarde voltar, melhor. Está pensando que deverá devolver aquelas sessenta mil liras à senhora Pasubio, porque é culpa dela, Loredana, se entraram naquela maldita Land Rover, a senhora Pasubio hesitava. A senhora Pasubio é pobre. Não ganha nada com aquelas roupas usadas. Ninguém nunca compra nada. São horríveis. De repente começa a chorar. Do nada lhe veio uma tristeza. Ficou assustada. Viu a menina com tanto sangue no rosto. Disseram-lhe a palavra “concussão”. Além do mais, está cansada, está completamente cansada, sente-se esgotada, está cansada de trabalhar naquele escritório de merda, ter de bater à máquina sempre brigando com o relógio, o emprego foi encontrado por Cicagna, Ernesto Cicagna, o pai de Alfia, mas não lhe agrada. Está cansada. Gostaria de descansar. Além do mais, Alfia é tão cruel. Idêntica ao pai. O gênio de Cicagna. Duro. Um jeito desdenhoso. Como a trata mal. Tem um tom que dá até calafrio. Chora, e ele acaricia o cabelo dela, aquela moita volumosa, áspera.
A senhora Pasubio volta com um monte de roupas nos braços, de bom humor porque Cristina disse que passará pela loja. Vê Loredana em lágrimas. Ao vê-la em lágrimas, torna-se severa e imperiosa. Propõe que façam um risoto. Agora. Não há tempo a perder. Um risoto quente e gostoso é muito reconfortante.
Ele se senta na cozinha, faz companhia a Loredana que corta cebolas. Loredana segue contando-lhe de Alfia, mas agora está serena, não tem ideia de como Alfia é bonita, como é inteligente, como toca bem violão. Ele entretanto a observa, grande, firme, ali do outro lado da mesa, agilmente cortando as cebolas e misturando-as no azeite, com a saia tão justa no ventre que dá para ver a forma do umbigo, fundo feito uma xícara. O tempo em que viveram juntos lhe parece estranho e distante, e essa lembrança lhe traz uma sensação de opressão, e tal sensação de opressão se renova a cada vez que ele a vê, ou quando ela lhe telefona para pedir dinheiro, conselhos, chorar, lamentar-se de Cicagna ou dos outros namorados que teve. Sente-se ligado a ela por laços ocasionais e casuais, como se feitos de fitas ou cordas, laços desordenados e puídos, fortíssimos, indestrutíveis.
Depois do risoto, a senhora Pasubio tira as cartas para Cristina, porque a senhora Pasubio é muito boa de adivinhar o futuro. Segundo a senhora Pasubio, daqui há um ano Cristina encontrará o homem da sua vida, um homem com grandes responsabilidadespúblicas, um magistrado, ou talvez um militar. Ele e Cristina voltam para casa às sete da noite. Loredana permanece em Via dell’Anima com Donatella, vão dormir ali, assim não encontram em casa os vestígios da festa. Em casa, fechado em seu quarto, ele se deita na cama e respira. Mais tarde toca o telefone. Ele atende, é Aliotta. Já sabe de tudo, Aliotta, telefona para informá-lo que já sabe de tudo. Loredana ligou para ele. Os holandeses. A Land Rover. O capotamento. O risoto. Aliotta diz que passou um dia feliz, recolhido no campo, com a máquina de escrever, em uma calmaria perfeita. Não estava preocupado com Loredana, já tinha entendido que era uma coisinha de nada, Loredana é sortuda, nunca lhe acontece nada, é sempre tempestade em copo d’água. Quanta paz, naquelecampo, gostaria de nunca mais voltar. Trabalha tão bem ali, trabalhará mais ainda, até a meia-noite. Comeu um sanduíche de queijo, bebeu uma cerveja e basta. Chovia mas agora parou de chover e surgiu a lua, uma lua grande, amarela, maravilhosa. Que paz suprema. Escuta o coaxo das rãs.
Natalia Ginzburg (1916-1991) foi uma escritora e tradutora italiana. Nasceu na capital da Sicília, ainda que sua família tenha mudado diversas vezes de cidade durante sua infância e adolescência. Com a ascensão do movimento de extrema direita na Itália, a família engajou-se na luta antifascista. É conhecida por livros de ensaios como As pequenas virtudes (1962) e Léxico familiar (1969).