Chaplin, tipografia e revolução: a arte gráfica na Rússia dos anos 1920
A pesquisadora Neide Jallageas, criadora da editora Kinoruss, publica texto inédito no Boletim Tatuí sobre a revista Kino-fot, que trouxe Chaplin na capa da terceira edição
por Neide Jallageas
A cena gráfica na Rússia revolucionária, no início do Século XX, foi marcada por uma inventividade, experimentação e produtividade assombrosas. Esse período destacou-se pelo protagonismo das vanguardas russas e soviéticas, que demonstraram a potência do poder criador humano e a expansão dos seus limites.
Por aqui abordaremos os anos de extraordinária criatividade na produção gráfica russa e soviética. E começamos com o casal da foto abaixo, talvez o mais famoso entre os representantes das vanguardas daquele lado do globo. Eles aparecem em seu apartamento-ateliê, em Moscou, localizado no complexo dos VKHUTEMAS, onde também lecionavam. O ano é 1922. Eles são Aleksandr Ródtchenko e Varvára Stepánova. Como pano de fundo estão as capas da revista Kino-fot (Cine-foto).
A revista Kino-fot foi idealizada e editada por um grande amigo da dupla, o também construtivista Aleksei Gan, cuja atuação foi fundamental para vários campos, como design e cinema. Foram publicadas seis edições entre 1922 a 1923. A publicação destacou-se por seu caráter singular, contando com colaboradores de nomes como o poeta Vladímir Maiakóvski e os cineastas Dziga Viértov e Liev Kulechov, entre outros. Ródtchenko, Stepánova e Gan trabalharam junto em diversos projetos e a Kino-fot é um bom exemplo dessa parceria. Além disso, a revista demonstra a versatilidade dos artistas da época que, ao mesmo tempo que teorizavam e lançavam manifestos, criavam obras que ajudaram a definir o que hoje conhecemos como design. Segundo a Enciclopédia das vanguardas russas, as tiragens variaram entre 4 e 8 mil exemplares.
A edição número 3 da Kino-fot foi dedicada a Charles Chaplin, com a capa desenhada por Stepánova, a partir de um esboço de sua autoria. O interior da revista traz outros nove desenhos, mostrando os movimentos de Chaplin como referência para o teatro e o cinema, que deveriam se distanciar do drama psicológico e adotar uma nova linguagem corporal.
O projeto gráfico interno da publicação é ousado e inovador. Nele são utilizados elementos tipográficos transversais, construídos por linhas grossas, blocos rígidos e fontes variadas, com e sem serifa e de diferentes tamanhos. A assimetria e as imperfeições propositais são marcas registradas nos projetos gráficos de Gan, Ródtchenko e Stepánova, cuja influência ecoa mundialmente até os dias atuais.
O texto da revista aborda a popularidade de Chaplin [Charlo, para os russos], mas também discute a complexidade de classificar seus filmes. Embora provocassem risos, suas obras não se encaixavam propriamente no rótulo de "cômico". Um tom satírico perpassa todo o conteúdo, reflexo do humor característico dos escritos de Stepánova, que também era poeta e cronista. Em um trecho, ela e seus camaradas ironizam:
[...] Desdobre qualquer revista parisiense dinheiro ou um jornal e você encontrará notícias sobre Charles.
TUDO SOBRE CHARLES: biografia, aparência, crenças, menu, nome da amante [...]
A ironia sobre a popularidade e as imitações baratas do cinema chapliniano contrasta com a admiração por suas qualidades artísticas, destacadas por diretores de teatro e cinema soviéticos, como Meyerhold, Viértov e Kulechov:
O que é importante para nós é Chaplin, o mestre, o trabalhador persistente e os métodos técnicos que utiliza
A intertextualidade entre formas gráficas — desenhos, blocos e tipografias — e o conteúdo é uma das marcas mais poderosas das vanguardas russas e soviéticas. Essa ousadia não se limitou a livros e revistas; invadiu palcos dos teatros, ocupou as ruas e transformou os espaços expositivos em manifestos visuais. A audácia desses artistas em desafiar convenções e reinventar a linguagem visual continua a ecoar, inspirando e sendo copiada até os dias de hoje. É justamente essa herança revolucionária, tão atual e necessária, que nos convida a retomar essa discussão em breve.
Neide Jallageas é criadora e coordenadora da Kinoruss Edições e Cultura e pesquisadora independente com foco nas vanguardas russas e soviéticas e no cinema de Andrei Tarkóvski sobre o qual realizou doutorado (PUCSP) e pós-doutorado (FFLCH e ECA/USP e Museu Russo de Cinema, em Moscou). Escreveu Vkhutemas: desenho de uma revolução junto a Celso Lima, com quem também realizou a curadoria da mostra Vkhutemas: o futuro em construção pela qual receberam o prêmio APCA (2019). Em 2020 recebeu o prêmio Biéli Slon (Elefante) da Guilda de Críticos de Cinema da Federação Russa, pelo conjunto de sua obra (pesquisa, ensino e edição).
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Este texto amplia o Boletim Tatuí nº 118. Inscreva-se para receber o conteúdo semanalmente em sua caixa de e-mails.