Cães da ditadura
Diante de "Ainda estou aqui", o momento é ótimo para visitar a Venezuela com o livro "Simpatia", publicado pela Incompleta. Por João Varella*
Ainda estou aqui ganhou o Oscar para orgulho geral da nação, embora não seja unânime. Normal, deve ter até quem não goste de O Poderoso Chefão.
Algumas críticas negativas ao filme não merecem espaço algum. Outras soam pueris, como a ressalva de que a narrativa omite outras questões da época da ditadura militar. Parece uma observação típica dos distraídos pelas redes sociais. "Se eu vi todos os looks do Oscar num Reels, como Walter Salles não esgota o assunto em mais de uma hora?".
A produção do filme fez uma escolha de foco. Se por um lado a observação entrega o transtorno de atenção do crítico sem chegar perto de desqualificar Ainda estou aqui, também aponta a vontade de entender como é a vida debaixo da bota de um regime ditatorial.
É oportuno olhar hoje ao redor e o livro Simpatia, do venezuelano Rodrigo Blanco Calderón (Incompleta), abre uma janela. A trama se passa numa Caracas em decomposição, em processo de abandono. Além da própria cidade, quem fica para trás são os cães e alguns esperançosos.
Ulises, o protagonista, visa honrar o testamento de seu ex-sogro, um general que estipula a criação de uma instituição de amparo aos animais abandonados, a Fundação Simpatia, que dá título à obra. Ulisses terá de se relacionar com a família, a rede política do militar e com o passado.
Entre os núcleos dramáticos, há uma autora, que escreve de uma maneira propositadamente chata por querer ficar sozinha no jardim, acompanhada apenas pelos cães.
A tensão da trama está plasmada no cenário, uma sociedade paranoica e famélica. A narrativa trabalha com temáticas recorrentes: argonautas (da mitologia grega), órfãos, Simón Bolívar, entre outros. Agem como refrãos reiterando o tópico, estratégia usada por escritores como Ricardo Lísias e Chico Buarque. Uma temática que costura todas as tramas é o mandar e obedecer, tensão típica do autoritarismo.
Simpatia evita o realismo de Ainda estou aqui sem investir no deboche de A tirania das moscas, da cubana Elaine Vilar Madruga (que eu adoro). Abordagens distintas para a falta de democracia, um tópico inesgotável e em crescimento nos nossos dias.
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Simpatia é o livro do mês do Clube Tatuí de Leitura, tem tradução de Raquel Dommarco Pedrão e foi publicado pela editora Incompleta. A participação é gratuita.
* João Varella fundou a editora Lote 42, livrarias Banca Tatuí e Livraria Gráfica e a escola de publicação Sala Tatuí. Produz eventos do circuito de publicações independentes, como a Feira Miolo(s) e a Printa-Feira. Escreveu sete livros, entre eles Me tirar da solidão, Videogame Pandemia e Videogame, a Evolução da Arte.