Este conto de Tânia Faillace foi publicado em março de 1977 na quarta edição da Revista Extra Realidade Brasileira, e está disponibilizado no site Memorias Ditadura. Ele foi escolhido para o encontro do Terapia Literária da Sala Tatuí do dia 9 de dezembro de 2025. Inscreva-se em www.salatatui.com.br para receber o link do Zoom.
Ronaldo não voltou para casa depois de sábado. Na manhã de quarta-feira, Sabina se embalava na rede, no pórtico de sua casa. Chegou Artur e perguntou: “Ronaldo já voltou?”
Sabina, que estava acostumada com as ausências repentinas e misteriosas de Ronaldo - “não me procura, mãe, isso pode me prejudicar” - respondeu, sem maior atenção:
- Ainda não.
Artur hesitou.
- Mas não voltou desde sábado, ou saiu de novo? Sabina sentiu um assoprãozinho de inquietação. Um assoprãozinho, só.
Não voltou desde sábado - uma pausa: - Mas vocês não tinham saído juntos?
Artur começou a puxar as pontas do bigode, e não respondeu.
Sabina parou de embalar-se na ree, e insistiu, com uma certa irritação:
- Vocês não tinham saído juntos?
Artur limpou a sola do sapato no degrau do pórtico, e numa arrancada aproximou seu rosto de Sabina:
- Por favor, não fale nisso para mais ninguém. Eu estava com ele, sim. “Eu estava com ele, sim”.
Uma confissão. Mas que confissão? Porque uma confissão? Algo vergonhoso, pensou Sabina. Algo mesmo imoral... escabroso... - e no mesmo instante, um impulso veemente que ela nem entendeu: que seja isto, que seja isto... Ronaldo puxador de fumo, Ronaldo pederasta, Ronaldo currador, Ronaldo ladrão... o que de pior, desejava ela com uma força esquisita que lhe vibrava nos ouvidos.
- Que foi que vocês fizeram? - disse Sabina seriamente, como um juiz. E esperava o rubor subir ao rosto de Artur, esperava ver Artur desviar os olhos, esperava ver Artur gaguejar, voltar umas meias costas... esperava qualquer coisa desse tipo.
- Nada de mais - dizia Artur - Encontramos uns conhecidos... a senhora não conhece... não vale a pena dizer quem são... Depois...
E Artur se jogou na rede junto dela. Sabina viu-se agarrada, de repente. E os braços que a apertavam tremiam. Sabina sentiu um frio intenso envolvêla toda. Dos chinelos de dedos até os rolinhos no cabelo grisalho. E cada estremecimento do rapaz a seu lado, descia de mais um grau a temperatura de seu casulo de gelo. Artur respirava forte, e Sabina percebia bem que eram soluços secos, mas não podia tirar conclusões, nem se mover, nem fazer perguntas.
- Me perdoe, por favor, me perdoe... - dizia Artur - ... mas eu não pude, eu não pude... eu vi tudo, mas eu não pude... eu me escondi...
E Sabina ficou sabendo. Foi assim que Sabina ficou sabendo. Artur chorava em seu ombro, em seu peito, em seu pescoço, e ela já estava sab imdo. Como se há muito devesse ter adivinhado.
- Eu entrei num bar para comprar cigarros... Ronaldo ficou do lado de fora me esperando... Foi por iso que eles não viram que a gente estava junto... O carro parou e levaram Ronaldo...
“Hoje é quarta-feira - pensava Sabina - hoje é quarta-feira... Sábado, domingo, segunda, terça... quatro dias...” E domingo fora dia de ir à casa da mãe, comparar filhos com as irmãs, e lamentar a ausência de um Ronaldo tão arisco, tão mais bonito, tão mais forte, tão mais independente que todos os primos... E segunda fora o dia de ir ao dentista e admirar o enxoval da filha de Dona Rossana... E terça fora dia de receber... E Sabina vivera aqueles quatro dias, como dias quaisquer. E Sabina nem lembrava exatamente como os minutos e as horas se tinham engatado, se tinham preenchido... em que momento ela se deteve no aqui, para fazer a transposição essencial - o que será que ele está fazendo?
E Sabina se levantou bruscamente, empurrando Artur.
Você sabe onde ele está?
Artur encolheu os ombros:
- Certeza nunca se tem, mas a senhora pode rocurar... A senhora deve procurar!
Se o cara parece sozinho, que ninguém se importa... A senhora TEM que procurar! Eu é que não posso aparecer!... Se eu pudesse... A senhora entende?
Sabina quase perguntou: “Por que você não veio antes?” Entrou em casa. Desfez cada um dos rolinhos grisalhos bem devagar, com determinação, dominando dedos que se extraviavam. Trocou de vestido, encheu a bolsa com todos os seus documentos e o dinheiro da pensão que recebera no dia antedor, e saiu de novo. Artur já tinha ido embora.
No portão da casa, uma sensação de deslize. Como se Sabina escorregasse por suas próprias pernas. Morrer, Sabina... Dormir, Sabina... Virar bicho, Sabina... Não ser mais ninguém, Sabina...
Como custava chegar à esquina.. Os sapatos escorregavam na calçada. Sabina empurrava o lajedo para trás, como se este grudasse em suas solas, e as distâncias aumentassem infinitamente... Por vezes, era esse mesmo torpor, meloso, viscoso, que reanimava o passo de Sabina. Um sonho, um delírio, uma fantasia de menopausa. Sabina... E Sabina procurava islumbrar o próprio filho, Ronaldo ele mesmo, derreado em roda de fumo, embriagado em bordel, em grupo de malandros, em pijama bordado num apartamento de homem rico. Qualquer coisa, Ronaldo... Ronaldo em holocausto por si mesmo, roído de sífilis, debochado, efeminado.., coisas horríveis salvando Ronaldo. O que de pior, o que de pior, murmurava Sabina sem sentir. Filhote doente, perdido, Sabina acharia. E engoliria para sempre jamais, a vaidade pueril diante das irmãs.
Sabina apalpava o dinheiro na bolsa. E os documentos. E preparava as palavras. E ao preparar as palavras, era que tudo lhe saltava de uma vez, aos ouvidos e ao coração como no primeiro minuto. No abraço de Artur.
Sabina atou o cinto de segurança no táxi. O motorista riu, surpreendido: “Poxa, dona, é a primeira vez que um passageiro meu faz isso...” Sabina também sorriu, amortecida.
Sabina desceu. Sabina pagou. Sabina viu o inotorista olhar para o seu bolo de dinheiro. “Talvez me assalte”, pensou ela, aliviada. Mas o carro arrancou e ela teve que subir as escadas do edifício.
Sabina viu as pessoas. Sabina falou com porteiro Sabina falou com recepcionista. Sabina falou com funcionário. Sabina esperou em banco de madeira. Sabina contou os escarros e as manchas do chão de ladrilhos. Sabina ouviu vozes no teto muito alto, Sabina esperou. Ninguém falou com ela. Sabina tentou falar com todo mundo. Sabina enfiou-se corredores adentro. Sabina foi detida. Sabina foi barrada. Sabina foi censurada asperamente. Sabina foi levada à presença de alguém. Sabina mostrou seu documentos. Sabina foi hábil para deixar entrever o seu dinheiro. As negativas hesitaram, enquanto o gordo bigodudo olhava para dentro da bolsa. E o murmúrio rápido, temeroso, de confidência... Oficialmente, nada podia dizer... oficiosamente, que coração perverso resistida ao apelo de uma mãe? A bolsa de Sabina ficou mais leve, seu corpo mais rígido e pesado. O gordo bigodudo sussurrou alguns nomes e sugestões, e Sabina saiu correndo, em demanda à cidade.
Anoitecia. Sabina batia em escritórios fechados. Sabina atirava-se de escadas e elevadores, andares acima e abaixo. Portas se fechavam. Luzes se apagavam. Surgiam de todos os lados, vassouras e baldes em mãos tão espessas como as de Sabina!
Sabina encontrou uma salinha aberta. Sabina tomou posse dela. A jovem morena, de pernas imensas, fechou a cara: “Expediente encerrado, o do or não atende mais”. Sabina foi surda de propósito. Sabina esperou. De olhos fechados e ouvidos atentos. A moça falou com ela. Sabina não respondeu; A moça insistiu. Sabina esperou que ela levantasse a voz. A moça levantou. A porta interna se abriu. A moça se queixou para o doutor. O doutor deixou Sabina passar. O doutor deixou Sabina falar.
Enquanto falava, Sabina ia entendendo tudo. Tempos antes e depois. E as velhas ausências de Ronaldo eram outros tantos elos em seu entendimento.., e a confissão escondida de Artur era um silêncio agora dela. Sabina entendia. E a enormidade da loucura e da coragem daquele filho assustavam-na mais que as taras imaginadas. Nunca que Sabina creditara realmente nelas. E agora o filho estava nu. Vulnerável. Inalcançável. Mas Sabina nada falou de sua compreensão ao doutor. Sabina guardou-a para si. Sabina falou dos fatos. Dos fatos estreitos de que dispunha. E o filho ficava mais só.
Era noite de quarta-feira. No escritório, Sabina assinava procurações. “Que horas são, doutor?” Quinto dia... E o ventre de Sabina se cerrava, como se seus intestinos se petrificassem. Era preciso toda aquela pedra para que ela se pusesse de pé, andasse, fosse para casa. Era preciso toda aquela rigidez para sustentar um tempo estático.
Em casa, Sabina tomou um copo de leite. Deitou-se de sapatos. A noite avançava. Em goles. Gotas. Sabina queria que a noite saltasse ou se eternizasse. Para tudo mudar ou tudo deixar de acontecer, suspender-se infinitamente... Era a hora passando que a assustava. Era a hora que acontecia, que a enregelava. Na imobilidade, Sabina sonhava segurar o tempo. O tempo em que as coisas aconteciam. Ela aqui. O outro lá.
Três dias Sabina correu entre o edifício, o centro da cidade e a casa do subúrbio. Três dias em que ela se ocultou de suas vizinhas. Procurou sua innã no domingo para pedir dinheiro emprestado. A família então ficou sabendo. Espalharam-se todos pela cidade.
Terça-feira, Sabina recebeu um recado. Um acidente... O tempo tinha terminado. Sabina não chegara a pensar nisso. Sabina insistiu em ter o filho em. casa. A família apoiou. Os amigos e parentes e compadres reforçaram. O doutor se via louco correndo de um lado para outro.
Sabina andou de casa em casa por toda a rua, avisando os vizinhos, convidando os vizinhos. Tinha um rosto cinzento e uma voz baixa e firme. Os vizinhos não sabiam o que dizer, e seguravam com força a borda de suas portas, como se quisessem sentir a madeira ou o regurgitar do sangue nos dedos retesos.
Quando os carros chegaram a casa já estava cheia de gente. Sabina abrira todas as portas e janelas, sem perguntar de quem entrava ou saía.
Ronaldo vestido de azul-marinho, o queixo amarrado, deitado na mesa, feito eça. Sabina ao lado dele. Mão acariciando a faixa de gase, outra mão vasculhando no bolso do vestido.
E Sabina ergueu no ar a faixa cortada. Descobriram-se os olhos do rapaz, descobriram-se os dentes do rapaz com a queda do queixo. Na sala, nos corredores, houve suspiros e arquejos baixos.
Gengivas sangrentas, dentes quebrados mostrava a boca de Ronaldo. Sobre os olhos desbotados, as pálpebras se encapelavam em pústulas e bolhas.
Sabina descruzou as mâos roxas e enrijecidas, desabotoou um paletó trespassado, há muito fora de moda. Mas o braços não saíam das mangas. Sabina estalou sua tesoura de costura, especial para moldes. Sabina cortou o casaco de alto abaixo. O casaco, a camisa, as calças - sapatos e meias foram fáceis.
Ronaldo estava nu sobre a mesa. Tão nu como há vinte anos atrás, quando a mãe lhe besuntava de óleo as nádegas e o sexo, e as tias lhe tocavam a campainha do umbigo. Tão nu como quando lhe fugia de mãos e joelhos para a porta da frente, e rolava os degraus do pórtico, e a mãe vinha correndo dos lados da máquina de costura. Tão nu como quando se espojava na esteira ensolarada do quarto, enquanto a mãe procurava roupas nas gavetas.
Mas não era esse Ronaldo que Sabina pensava. Sabina pensava no Ronaldo de sábado, de domingo, de segunda, de terça...
Sabina acariciava um tórax emagrecido, afundado, estilhas de costelas levantando a pele, como os esteios de uma tenda; Sabina percorria, como num mapa, as lacerações daquele corpo; Sabina debulha a unhas maceradas.
Sabina forçava as coxas de seu filho. As coxas resistiam. Sabina lutava contra elas. O cunhado se aproximou de Sabina, para contê-la. Mas viu-se ajudando Sabina, viu-se violentando o sobrinho rígido e passivo. Foi a carne apodrecida de muitas queimaduras que se abriu aos olhos de todos, um ânus negro, lacerado, fundindo-se com nádegas e testículos esmagados.
Do corpo, agora todos se apercebiam, subia um odor preciso e renovado. De pântano. E de ódio.
Tania Jamardo Faillace nasceu em 1939, em Porto Alegre. É autora de ao menos oito obras distintas, publicadas entre 1964 e 2016: as novelas Fuga, de 1964, e Adão e Eva, de 1965, os livros de contos O 35º Ano de Inês, 1971, Vinde a mim os Pequeninos, 1977, e Tradição, Família & outras estórias, 1978, a peça Ivone e sua Família, também de 1978, o romance autobiográfico Mario/Vera – Brasil 1962/1964, de 1983, e o romance com mais de sete mil páginas Beco da Velha, escrito entre 1976 e 1994, do qual a primeira parte, Peças para Montar, veio a público em 2016. Exemplares de todos os livros foram recentemente doados, pela autora, à Biblioteca do Estado

